O Umbigo do Aleijadinho
No Dragoscópio :
Tirando Jesus Cristo (na sua dimensão “humana”) creio que não deve haver sábio mais maltratado que Nietzsche. Há um Nietzsche detrás da pirotecnia -dos humores, como sensatamente viu Cioran -, mas a malta fica-se pela rama, pelo foguetório. Cada qual agarra o que lhe interessa, o que lhe convém, enfeita-se com ele e sai em procissão de psicoflagelantes. O problema é que Nietsche não se deixa digerir, ainda menos jiboiar, facilmente. Kant esconde-se atrás da teia abstrusa, Nietzsche envolve-se em fogo de artifício. Porque, além do filósofo que poderemos ou não apreciar, está, muito provavelmente, a melhor literatura da língua alemã. Um duplo génio portanto. E mesmo aqueles que desgostem da sua ética, dificilmente encontrarão motivo de reparo na sua estética. Como diz o povo, sentir-se-ão tentados a perdoar-lhe o mal que faz pelo bem que sabe.
Fernando Pessoa, um “nietzschiano”, haveria de tecer o diagnóstico adequado: o poeta é um fingidor. Poderia o poeta Nietzsche fugir a esta inexorável regra?
Mas vamos à célebre “morte de Deus”.
Sempre que se fala em Nietzsche, lá vem o “óbito Celeste”. Foi Nietzsche que fez a “proclamação da morte de Deus”, acusam os magistrados retóricos. Ainda sábado passado, no DN, o mestre-escola Borges arengava disso, como prelúdio a mais não sei que ecumenismo catita. Para o vulgo, sempre predisposto à balbúrdia e à alarvajura, a notícia decorrente destes arautos peregrinos é que Nietzsche matou Deus. Naturalmente, qualquer beato de loja de conveniência desata a vociferar contra o malandro do Nietzsche que, tendo visto Deus a chilrear numa faia, tratou de abatê-lo, sem dó nem piedade, com a sua fisga de filósofo travesso. Em contrapartida, os ateístas, superbeatos ainda mais ferozes, celebram-no como um hércules mundador de hidras opressoras. Entre uns e outros, evidentemente, o diabo só não escolhe porque patrocina.
Bem, Nietzsche matou Deus? Qual Deus? Como dizia o outro da chapelada, deuses há muitos. Andamos há milénios não apenas a matar-nos uns aos outros, como, proeza ainda mais gloriosa, a matar os deuses uns dos outros. Não foram tantos como as gentes, mas ainda dão um magote razoável. “Ah, mas Nietzsche, grande monstro, matou o nosso Deus! O de todos nós!”- bramais.
Deduzo, portanto, que Deus é uma propriedade vossa, um latifúndio. E vós sois “todos”. Pergunto-me o que pensarão os chineses e os indianos da morte desse “vosso” Deus. Ou os tipos, alguns deles certamente bem esquisitos, espalhados
por essas galáxias fora. Mas vós sois os eleitos, os principais, os queridinhos, os filhos pródigos, será isso? Pergunto-me onde tereis ido buscar uma ideia compaixonada dessas…
Estou a mangar com a simbologia, pois estou. A “morte de Deus” não é literal, é simbólica. Morreu na filosofia e no pensamento ocidental; morreu na mente da nossa civilização. É isso que Nietzsche proclama?
Não proclama: constata. Verifica. Atesta. Há toda uma diferença. É o médico que passa a certidão de óbito. A malta, com a estridência arborícola digna da espécie, confunde o médico com o assassino.
Alguém andou a matar Deus. E Deus deixou-se matar? Que raio de Deus vulnerável é esse, que se deixa arrumar e varrer ao jeito das manias, conveniências e modas da turba iluminada? É um Deus sério ou é um deus-muleta, deus -prótese humana? De tal ordem que um dia o aleijadinho, ao descobrir a cadeira de rodas, festejou: “já não preciso da muleta para nada!” E ainda hoje anda nisso: “guardem lá o deus-muleta, agora já temos a ciência-cadeira de rodas!…”
Certamente, não foi Nietzsche quem fez do aleijadinho o umbigo do mundo e do Cosmos a mundana onfaloscopia de Deus.
Como se Deus não tivesse outra ocupação senão contemplar o umbigo do mundo. Como se Deus não tivesse outra finalidade que não existir para essa vigilância.
E, ainda mais certamente, não foi Nietzsche quem, antes da “morte”, proclamou (aí sim, proclamada e reproclamada) a ausência de Deus. Quando se fez do mundo o “reino do mal” e Satã o príncipe desse Reino. É assim que a hubris trabalha. Daí ao caos presente foi um passo breve, fatal e duplo: entregaram a alma à Razão e o corpo ao diabo. E o mais pavoroso é quererem salvar com a razão aquilo que assassinaram e continuam a chacinar com ela. Confundem o punhal com a cruz. Confiam numa rameira para guardiã da virtude e pitonisa da verdade. Haverá melhor alibi para o criminoso do que a máscara de vítima?
Nem Nietzsche pretendeu arvorar sistema, formar escola ou arrebanhar prosélitos, nem me animam a mim ímpetos oraculares ou sequazes. Do pouco que sei, sei que não se venera Nietzsche: luta-se com ele. Arranca-se a alma à sala de ópio e lança-se ao chão de Sófocles, de Ésquilo, de Aristóteles… e do Calvário.
Tanto ou mais que a “morte de Deus”, o que atormentou Nietzsche foi o Seu esquecimento. Isso e um encargo inestimável de que nunca será louvado o suficiente: o de dizer ao aleijadinho possesso algo que ele, hoje ainda mais que então, merece ouvir: “Tu, piolho cósmico, não és o umbigo nem a vedeta-mor do universo! Tu és apenas o protagonista duma tragédia. E quando te ensoberbesces, afinal, só te amesquinhas.”
59 comments on “O Umbigo do Aleijadinho”
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Ou mesmo supercalifrankenfurtenalidocious…
Digo, FrankfurtensToys R Us.
Frankfurtenstein…
Exactamente, sr. Dragão! Um exemplo da cornucópia epistemológica do sr. Duck:
“Insofar as cartoons do any more than accustom the senses to the new tempo, they hammer into every brain the old lesson that continuous friction, the breaking down of all individual resistance, is the condition of life in this society. Donald Duck in the cartoons and the unfortunate in real life get their thrashing so that the audience can learn to take their own punishment” (Theodor Adorno, Max Horkheimer, The Culture Industry: Enlightenment as Mass Deception (1944), em tradução).
Porquê insuficiência? Porque não cornucópia?…
Ó caraças, rapariga!
O gajo pergunta-me aqui, é aqui que eu pergunto também. Ora essa!
E tu, endemoninhada madrinha, como vais?
Beijocas.
ó caraças, rapaz.
Vai lá perguntar-lhe ao blogue dele. Até fez novo post dedicado ao Luís.
V.s parecem aqueles putos traquinas.
(quem fala…
ehehehe)
E qual é a insuficiência epistemológica do Donald, o pato, ó Dragão?
Luís:
O Dragão dedicou-te um post.
Ide para lá rapazes que aqui não se aprende nada.
…………….
Henrique: então estás a falar dos deuses de loiça das caldas ou dos camaradas em panteão?
É que os ateus darwinistas foram os únicos a estabelecer hierarquias no humano, em função da percentagem de macaco que pode existir entre eles. Ainda hoje andam às voltas com isso- com a eugenia e outras variantes à Galton.
Para qualquer católico ou cristão essa questão não se põe. Somos todos iguais, todos filhos de Deus. Nenhum é sagrado; sagrada é a Criação e a Vida.
Razão pela qual também derivou de muito ateísmo esse desprezo pelos animais, pela natureza, por tudo o resto- já que consideram sagrado o humano, acima de tudo.
LUIS: o outro deve ser sagrado para nós.Mas isso não exige que sejamos idiotas para com o outro.
Só que mesmo sacana ou criminoso, o outro continua a ser Homem. E deve ser trtado como sacana ou criminoso-mas também como Homem
Ó Luis, a essa da sacralidade toda é que eu me limitiva a imitá-lo e respondia apenas com uma expressão:
Holly Shit
“:OP
Isto está a mais:
“Mas nem todos os tempos foram nem serão de prosperidade e pacífica contempla”
Mas claro que não é a esta sacralidade que se refere. A sacralidade republicana, a ética republicana como dizia o nosso Pino Moura, é a ética da lei. Ou seja, sou administrador da Iberdrola e não fujo ao fisco nem mando assassinar ninguém. É a ética do instalado, é a sacralidade que não nos custa nada. E para tempos de bonança (e para gente próspera) até diria que funciona bem. É mesmo a ética burguesa por excelência. Pior é quando temos que escolher entre a sacralidade do outro e apanhar-mos porrada como diria o Pessoa. Aí é que se vai a sacralidade toda pelo cano abaixo.
O próprio Cristo nos diz no Evangelho que cumprimentar os amigos e ser educado para quem é educado não tem mérito algum. Não fazem também isso os pagãos perguntava Ele? Isso não é ética nenhuma, isso é comportamento tão natural e instintivo no homem como o de matar o vizinho e ficar-lhe com a mulher, só que em esferas diferentes de convivência.
Mas nem todos os tempos foram nem serão de prosperidade e pacífica contempla
Venho só dar seguimento ao debate com o Henrique. Diz que:
“Oh Luís: o outro deve ser sagrado para mim quanto mais não seja por uma questão prática, tão ao gosto de Kant: só sendo o outro sagrado para mim serei eu sagrado para o outro.”
Ora eu não sei que raio de mundo ou de espécie humana é que conhece mas eu diria que esta fundamentação é meramente absurda. Se há algo que se pode dizer com bastante segurança é precisamente o contrário do que diz. Se alguém não tiver o outro como sagrado (e for possuidor de determinadas características) a probabilidade de ter sido verdadeiramente como sagrado pelo outro aumenta exponencialmente. Será preciso citar os inúmeros cultos da personalidade ao longo da história? E não estou a afirmar que Nietzsche defendesse uma ideia dessas, mas que essa ideia retributiva simplesmente não se verifica em qualquer domínio para além da retribuição do “bom dia” quando entra no trabalho (e às vezes nem isso). Aliás se tiver os outros realmente como sagrados o mais provável que lhe irá acontecer é ser espezinhado e violentado pelos outros. Esse é o exemplo de Jesus Cristo. Essa moral é absurda sem Deus, e mesmo com Deus é muitas vezes por nós sentida como tal.
Acho sempre piada a estes humanismos fáceis porque me parecem sempre muito mas muito mais ingénuos que o cristianismo (quando aparentemente se verificaria o contrário).
Fazes bem, Dragão. O Luís é um menininho muito inteligente.
Quando tiver tempo, vou dar uma achegazita ao Luís, lá no batel.
O Dragão do Antónimo está para a realidade como o pato Donald está para a epistemologia.
De qualquer forma tu leste Nieztsche para dele retirares boas razões de arremeço à religião (e costumas fazê-lo sempre), e eu não, nem para uma coisa nem outra.
Claro que o exemplo do ateísmo religioso e militante que faz de Nietzsche a cartilha para se babar contra o tal Deus que sabe que não existe não é caricatura tua.
A figura do grande Inquisidor não tem património religioso. O problema é esse. Já estou farta de te apontar por onde ele tem andado e por anda hoje.
O grande Inquisidor é sempre o que usa a casuística depois do trabalho da denúncia- e esse só existe se conseguir passar para o colectivo a bondade dela.
MP-S:
Seguiste aquela treta dos cartoons e depois do Wilders? tens lá exemplos chapados do ateísmo militante e até do humanismo integracionista, a darem o aval perfeito para novos racismos e novos estigmas de povos, à custa do mesmo- a valorização da razão, a seriação de povos de acordo com prosperidade, costumes, tradições, diferenças inaceitáveis para o jacobinismo da tal fantasia do “cidadão universal num estado de Direito”.
Vai lá dizer-lhe isso, ó bacano. Eu pouco percebo mas percebo que ele sabe
“:OP
………..
MP_S
trazes o crâneo?
Então vamos lá:
Tu acaste de o justificar porque disseste coisas correctas mas depois confundes razão com pensamento racional, do mesmo modo que confundes cientismo com trabalho da Ciência.
È é um facto que o Nietzsche deitou abaixo aquela tradição racionalista na filosofia e na incapacidade de se aceitar o aleatório. Porque tudo tem de ter uma explicação racioanl. foi aí que falou do cientismo como novo deus da razão. Acho que isso vem na Origem da Tragédiam mas é melhor confirmares com o Dragão.
A treta do sem Deus tudo é permitido e com Deus tudo é permitido é uma leitura bacoca que todos os ateus militantes aprendem para não explicarem nada.
Considero-te mais inteligente para não me vires com os exemplos da Inquisição ou outros que têm resposta idêntica no ateísmo e nos milhares de massacres sem Deus.
A questão é simples. Ao contrário do que o HD escreveu por aí, divinizar o homem é que é perigoso.
A noção de Deus singifica isso mesmo- não somos nós deuses e há uma lei acima de nós. Estamos todos cá em baixo a chafurdar e só descendo a esta condição é possível levantarmo-nos.
Isto é que é o oposto do olhar divino científico quando o tal anão-homem faz de Deus e agarra na Ciência e na Razão e a usa do alto, sobre o próximo.
Toda a tradição da Razão inverteu esta ordem. E é por isso que, como disse o Dragão, do Hegel ao Darwin tens um passo, pela tal evolução da razão/espírito de progresso no mundo. E do Darwin a todo o racismo, eugenias, nazismo, tens outro.
E sim, o jacobinismo do presente é o dos filhos de Darwin e não de Nietzsche.
…….
O Nietzsche do Dragão está para a filosofia como o balético Verde Gaio para a etnologia musical.
zazie, at 14:41
Sim, concordo, era isso que eu estava a dizer.
“Tu acabaste de o justificar.”
Nao justifiquei nada, zazie. A razao e’ a razao e’ a razao. Um filosofo contra a razao e’ pior do que um futebolista contra as bolas. Nao funciona. O problema nao esta’ na razao, esta’ em nao saber usa’-la – tanto ela propria autonomamente, como em harmonia com o resto da vida. Um racionalista a serio sera’ sempre um critico daqueles que utilizam a razao sem perceberem como nem porque. Em forma de blague digo-te: nao existe racionalismo, nem existe cientismo. Existem usos da razao e da ciencia muito pouco subtis e deselegantes. E’ tudo.
Qto. ao Dostoievski e os Irmaos Karamazov, eu sou um grande admirador. Mas nao concordo com o diagonostico de que sem Deus tudo e’ permitido. Um realista sabe muito bem que, com ou sem Deus, tudo pode ser permitido. O engenho humano para os sofismas e para as cancoes sedutoras chega bem para isso. A Historia mostra-o ‘a exaustao.
“A consquência da morte de Deus é que outro deus vai (já foi) para o seu lugar .E tenderá a ir sempre às arrecuas, à medida do anão (homem) a olhar para o seu umbigo.”
Essa foi uma consequencia que resultou de um processo historico contingente. Nao e’ necessaria, digo eu. Nem o Nietzsche, ou outro filosofo, conseguiria (ou quereria) demonstrar a necessidade dessa conclusao (o que nao e’ o mesmo que constatar a sua ocorrencia em varias circunstancias). Seria um prestigitador, um adivinho e, se o levassem a serio, seria tambem ele deformado pela maralha na forma de um anao grotesco. Alias, nos Karamazov existe a lenda do Grande Inquisidor – ou de como o proprio Cristo foi deformado e rtansformado por uma mascara que nao lhe servia mas acabou por se lhe colar ‘a pele…
MP-S
Só uma nota para o Luís,
Quando referi o humanismo e tendência para o universal, em termos políticos (e como um aparte à questão com o Tim) não me estava a referir a nenhum multiculturalismo. Era mesmo ao oposto- ao absouto integracionismo num único universal- o tal humano.
Para o Luís, és uma simpatia por aquele aparte em relação às macacadas do Cocanha mas olha que os arquivos são bem melhores que o presente…
ehehe
MP-S,
Os céus dos cristãos eram os mesmos que ele, de forma metafórica também encontrava nos ceús dos filósofos. A tal doença do espírito era o encerramento na cultura que mata a criatividade- o camelo que que carrega os livros e se faz leão que os derruba no deserto para daí nascer o novo dionísios.
ó MP-S, lá vens tu a filosofar com o crâneo do macacão na mão, para não perderes o científico…
1- A razão não é o pensamento racional- é o racionalismo- é a tradição racionalista que ele traçou desde o fim do espírito trágico dos gregos até à cultura do tempo dele, ao dogma dessa Razão e lógica que tudo aprisionava. Tu acabaste de o justificar.
2- Também não vi por aí ninguém a dizer que era entre ateísmo e o resto. A morte de Deus explicou-a bem o Dragão e o Luís aqui utilizou muito bem o exemplo de Dostievski. Foi isto. Se discordas só pode ser disto. O que o Henrique Dória escreveu nem conta.
3- A questão do colectivo foi entre o Luís e o Tim e eu também saí dela.
Aí também não percebi onde estava o problema ainda que fosse ao lado, é para eles um problema religioso e não filosófico. Razão pela qual eu disse que então, quem fez porcaria foi Hegel com a tal superestrutura.
…………
Aproveito para responder ao Luís.
Essa ideia do artista ou da passagem do individual para a Ideia que vai “encarnando” no Tempo, no tal espírito do tempo é que sempre me pareceu muito perniciosa.
E a noção de génio criador ou do progresso espiritual e de toda a cultura para um topo cada vez mais Ideia não teve qualquer interesse. Criou mais uma série de catalogações de estilos e de hierarquias e progressões para um fim que era o lugar onde ele se encontrava. Por isso, chegar à Ideia ou chegar a Deus era mais chegar a Hegel feio Deus a desvendar a Dialéctica do mundo.
infelizmente, nao tenho tempo de ler agora todos estes comentarios.so’ li os primeiros e houve um, zazie., que e arrepiou. Foi este:
“Tens de entender a gigantesca luta dele conra a razão.”
O Nietzsche nao lutava contra a razao. Ele criticava uma especie de razao extremamente llimitada e raquitica – aquela que nao e’ capaz de se interrogar a si propria, os seus fundamentos e, principamente, as suas INTENCOES. Dai’ a necessidade de fazer uma genealogia (nao so’ da moral, mas tambem da razao) porque nao podes deixar de esclarecer quais sao as tuas motivacoes, quais sao as questoes intelectuais que te preocupam e pretendes resolver se queres ter uma razao, uma filosofia, uma vida e uma visao do mundo criativas, afirmativas da vida e nao apenas simulacros e sombras. A razao usa-la para viver uma vida completa; nao a utilizas para catalogar as vidas, os comportamentos ate’ conseguires ter todas as rodinhas da engrenagem muito bem oleadinhas.
A questao nao e’ entre ateismo e cientismo, ou racionalismo, ou capitalismo e socialismo ou fascismo. A questao para Nietzsche e’ por uma vida criativa e a afirmacao dos valores por uma vida vivda no mundo concreto – por oposicao de valores que propoem as solucoes de outros mundos (o Ceu dos cristaos, a sociedade perfeita dos comunistas — os fascistas nem entram nisto porque sao uma aberracao logo ‘a partida). Aquele(s) que te(e)m esses valores podem basea’-los numa cosmogonia com ou sem deuses – isso e’ secundario.
A dicotomia individuo-colectivo tambem e’, de certo modo, espuria porque nao existe nenhuma contradicao entre a vida individual criativa e a comunidade. Pelo contrario, um individuo sozinho estagna e regride. O que existem sao os valores niilistas que o Nietzsche tanto criticava e que procuram moldar a sociedade negando o individuo . Esse niilismo e’ generallizado e tera’ muito a ver com a ‘escala desumana’ da sociedade resultante de uma industrializacao e de um processo historico extremamente violento de construcao dos estados do centro da Europa no sec. XIX.
MP-S
Ainda antes de vos dizer boa noute: o real interesse do Dostoievsky estava no jogo.
Para arranjar dinheiro para estoirar no jogo escrevia compulsivamente romances absurdos, como Os Irmãos Karamazov, ou O Idiota, com dramalhões horríveis e inverosímeis, no meio dos quais Nastacia Filipovna escrevia cartas de amor à rival Aglais.Aqueles dramas profundos, aquelas reflexões profundas sobre Deus eram tudo tretas para épater le bourgeois e lhe sacar dinheiro. Esta é a verdade.
Entre nós sucedeu o mesmo com Camilo. Que tinha um espantoso sentido de humor que Dostoievsky não tinha. Por isso acabou a estoirar os miolos com um tiro.
zazie (na continuidade do que queria escrever antes do Henrique),
Eu de filosofia percebo ainda menos e aliás não tenho pretensões nenhumas aqui na blogosfera de fazer outra coisa senão recriar um certo ambiente de serão familiar onde se discutem questões quejandas e que depois de alguns impropérios mais acalorados eis que chega o grande silêncio e é hora de voltar para casa, na maior das boas disposições com os restantes convivas dos quais ainda há umas horas se discordava vivamente. Admito perfeitamente, é o hábito mais pequeno-burguês em que fui criado e que desejo perpetuar, mas não me podia estar mais nas tintas para os juízos de valor. Dá-me gozo e quando posso cá venho à blogosfera, como vou dar uma corrida, ler um livro ou ir ao cinema com moderação q.b.. Não levo nem mais nem menos a sério que isso.
Quanto à tua qualidade de medievalista deixa-me só dizer (já várias vezes estive para enviar mail) que fazes aqui um trabalho impecável neste blog. A humanização (no verdadeiro sentido da palavra de tornar mais real e mais vivamente carregado da nossa condição) de um dos períodos históricos vistos de forma mais linear pelo vulgo é um enorme serviço que prestas e do qual retiro enorme prazer. E muito embora isto só por si fosse mais que o suficiente, fazeres esse trabalho relativamente a um período completamente fulcral na história da Igreja onde imensa coisa se definiu e consolidou só torna o blog ainda mais obrigatório, e na sua forma não alinhada, um serviço à própria Igreja.
Oh Luís: o outro deve ser sagrado para mim quanto mais não seja por uma questão prática, tão ao gosto de Kant: só sendo o outro sagrado para mim serei eu sagrado para o outro.Embora sobre isto Kierkgard tivesse uma posição interessante que me levaria muito para além deste espaço breve.
Bem, vou deixar esta conversa interessante e ler a Camille Paglia, a tal que me ensinou que a coisa da mulher tem os mesmos ingredientes quimícos do peixe podre. Ela é políticamente correcta e apoia o Obama. Por acaso eu apoio o Ralph Nader. Tenho cá um fraquinho pelos que perdem mas persistem sempre!
zazie,
Não falei num grande colectivo massificado e partilho o teu horror por ele. É que repara que esse é o erro da apropriação de Hegel por Marx, que ao acentuar o colectivo faz desaparecer inteiramente o indivíduo. O colectivo marxista é a abolição do indivíduo e das diferenças entre os indivíduos. Mas essa não é nem nunca foi a verdadeira dialética Hegeliana e sobretudo nunca foi a aspiração religiosa. Na dialética de Hegel nunca um polo desaparece para dar lugar inteiramente ao outro.
É que a ligação do indivíduo e do colectivo faz-se de forma muito mais misteriosa do que a diluição marxista. Para te ilustrar isto só consigo pensar no artista ou no contemplativo religioso. De tal forma entram dentro de si mesmos, de tal forma investem no indivíduo puro e duro que paradoxalmente se universalizam, quer na grande obra de arte que ecoa em inúmeros espíritos quer na oração eficaz no ânimo de cada um. É a afirmação do colectivo pelo individual, é a própria ideia no fundo que um veio redimir todos. Isto nada tem que ver com colectivos multiculturais pós-modernos.
Quando à posição do Henrique do “homem sagrado” não sou eu que vou contestar a sacralidade do homem. Agora só pergunto: qual homem? O indivíduo? A espécie humana?
E diga-me uma coisa, porque hei-de eu respeitar e assegurar os direitos do outro? Que felicidade me está assegurada por isso? Devo fazer isso só por mero dever moral, porque alguém me disse que essa é que é “a moral humanista”? Não é isso pura e simplesmente escravidão? É que ao menos o cristianismo diz que a vida moral é o caminho para uma vida feliz, se não nesta vida pelo menos na outra. Ora sem uma outra vida, que garantias me dá que essa vida moral será uma vida mais feliz do que uma vida imoral? E se não há modelos de sofrimento e de infelicidade suportada pela felicidade eterna diga-me: porque hei-de me sujeitar às leis e frustrações daí decorrentes do tempo presente se este punhado de décadas é tudo o que me resta?
Devo fazer isso só pela “tranquilidade”? Pela “segurança” de uma vida sem condenação social? Mas a condenação social se não vem pela infracção vem pela falta de sucesso e de poder cujas infracções me permitiriam precisamente conquistar.
Não percebo verdadeiramente como é que se funda uma moral ateía com os valores (no fundo) judaico-cristãos.
Corrijo: “É por isso…”
Já agora informo: sou leitor compulsivo de Nietzsche e de Dostievsky. Do primeiro comecei por A Origem da Tragédia, do segundo comecei por Os Irmãos Karamazov. Tudo nos meus 13 anos. É isso que esta discussão me dá sentido de humor.
Não Zaz: a integração global não será perigosa se for acompanhada de uma desintegração global. Parece a quadratura do círculo mas não é.Por ex: a integração está a permitir a sobrevivência do mirandês do padre Mourinho.
A integração global permitirá a Paz Perpétua pela qual ansiava Kant.E isso é bom.
Por outras palavras- essa também foi a herança de Hegel- a crença num colectivo universal.
Essas coisas foram lixadas. E vai-se pagar caro o preço político que daí derivou.
Para fundamentar moralmente qualquer coisa não preciso de Deus para nada. Aliás, este piolhinho cósmico que é o homem é mais do que Deus, porque Deus é o Grande Nada.
Para fundamentar moralmente qualquer coisa só preciso de considerar o homem como ser sagrado.
Foi o Elypse quem formulou ideias bem pertimentes a esse propósito, noutras conversas.
Um pequeno aparte, já que v.s (tu- luís e o Tim) passaram para a religião e o colectivo:
Achas que há alguma possibilidade vantajosa de um colectivo unido pela tal noção de Deus, quando o que existem são colectivos separados por religiões e ainda mais separados e confrontados pelo jacobinismo?
É que eu penso que esse é que é o grande perigo- a integração global.
Nah, a sabichice foleira tem a vantagem que é atacável e que poderá ser mesmo encostada à parede pela sua falta de coerência ou por simples falta de inteligência. Gosto da sabichice foleira porque a sabichice foleira permite que possa ser humilhado por alguém que seja mais sabichão que eu. Sempre é um risco.
A boca foleira é a posição mais cómoda para se ter em relação a qualquer coisa e é o que abunda na blogosfera em demasia. Dizem-se as maiores alarvidades e depois remete-se para o sentido de humor. Inatacável, já que quem acha que a alarvidade é mesmo só uma alarvidade é decerteza um tipo sem humor, um coitado que não se distancia e está enredado em questões menores (sabe-se lá quais são as questões maiores de quem chuta dostoievski e nietzsche para o lado como quem emborca uma imperial).
Mas não é nada contra si Henrique. É só que a discussão me estava a agradar e estas intervenções vivas chateiam-me sempre um bocado pela espirituosidade enfadonha (ainda mais enfadonha que a discussão de ideias) que querem passar.
Outra coisa. Luís:
O Henrique, como qualquer ateu endemoninhado, dedica parte da vida a estudar a religião para poder dizer mal dela. É mesmo o passatempo favorito dos endemoninhados. e é um bacano leitor do Cocanha.
As bocas foleiras têm muito mais interesse que a sabichice foleira. Pelo menos têm mais piada.
E o que tem piada é também a discussão ter terminado aí onde em nome de Deus se rachavam crianças ao meio.
Ah esse sentido de humor anda tão por baixo!
Mas ainda há pouco estive a ler um poema que o papa Clemente V enviou à sua amante Brunisette, a tal que custava ao papa mais do que a Terra Santa.
Aconselho a sua leitura.São poemas destes que nos afinam o sentido de humor.
Então vamos lá às apresentações para não andarem à porrada às cegas:
Luís: o Henrique é um maçon jacobino que tem a mania que é ateu militante ainda que seja bom-rapaz endemoninhado.
Henrique: o Luís é o menininho mais inteligente da blogosfera e é católico, para além de cientista e muito letrado em tenra idade.
Raras são as pessoas que conseguem empregar uma certa (e eu diria aparente) displicência léxical aparentando uma maturidade despreocupada e às vezes até simplista em que isso corresponda de facto a uma síntese madura, profunda e distanciada das coisas. Uma das poucas pessoas a quem reconheço isso é precisamente à autora deste blog.
A maior parte das vezes a linguagem simples não é sinal de outra coisa que não da própria pobreza do seu conteúdo. A simplicidade com sentido vem depois de muita interrogação complicada e como amadurecimento da mesma (excepto casos muito especiais em que existem certos dons naturais). É conquistada. Senão é só brejeirice de taberna.
Gosto sempre destes comentários armados em grande distanciamento e maturidade que não poucas vezes escondem apenas um abastardamento de qualquer discussão e uma tendência para levar para o chinelo e para a boca foleira e de taberna.
Está-se a falar da fundamentação da moral e vem-me o Henrique dizer que a fé em Deus por si só não torna as pessoas melhores (what else is new?) e desata a invocar as típicas contigências biográficas dos grandes autores que é sempre a forma mais buçal de criticar qualquer coisa que tenham dito…
Estes comentários estão cheios de humor.
Já agora informo que o que atormentava Nietsche não era a morte de Deus, que ele bem percebia ser a morte de uma linguagem.
O que atormentava Nietzsche era a sua incapacidade de se pôr na Lou Andreas Salomé. Daí a vontade de poder. Ele nunca pôde.
Depois esta conversa do Dostoievsky, ” Sem Deus tudo é permitido.” Dá vontade de rir às gargalhadas.
O D era um nevrótico em que o vício do jogo era compensado falta de humor.
Sim, porque é falta de humor dizer que sem Deus tudo é permitido.
Pensemos nos cruzados que conquistaram Jerusalém em nome de Deus, e em nome de Deus pegavam numa criança muçulmana e a esmagavam contra a parede ou lhe pegavam nas pernas e a rasgavam em duas puxando pelas pernas.
A verdade é esta: Com Deus tudo é permitido.
Tal como está amplamente demonstrado pela História.
Por outro lado, ó Luís, eu nunca tive uma noção de colectivo muito alargada…
O máximo dos máximos, depois da família, seria a aldeia ou o município
ehehehe
Sou mesmo medievalista. E nem tenho grande fé nessa mania que veio do Kant da irmandade dos povos, porque nem a universalidade do humano, em termos de identidades de povos, acredito lá muito. Apenas na tal noção de que é tudo fruto do mesmo- logo todos filhos de Deus. Mas pouco mais que isso. Qualquer ideia que tenda para integrações desses “manos todos” parece-me um disparate perigoso.
Por isso é que o humanismo também pode ser uma grande treta. E até acho que a uniformização dos nossos dias, e até toda a pancada de atapetar e diluir as diferenças vem daí- desse excesso de aproximação ao humano.
Luís,
Quanto à questão do cristianismo e do colectivo eu nunca procurei nada disso na filosofia.
Para falar verdade, nem procurei alguma vez o critianismo como relevância filosófica.
Acho que foi mesmo questão que nunca formulei e sei o motivo pelo qual tu tens preocupações e leituras de Nietzsche, assim como o Tim tem de Hegel que eu nunca tive:
Porque eu sou uma católica badalhoca, sem qualquer formação dentro da igreja. E, mesmo do ponto de vista do catolicismo e do cristianismo, o único modo de conseguir ligá-lo à socieade é apenas pela história, pela tradição, pela lei natural, pelos valores e raízes que, no meu caso são católicas porque nasci num país católico.
Ou seja, o sagrado é uma coisa, as religiões outras e eu nunca procurei nenhuma. Adoptei a caseira, e nunca iria para outra porque sou nacionalista.
Donde, há todo um pensamento e interesses para os quais nunca juntei a crença. Mais, até me deve ter passado ao lado.
Daí não conseguir sequer responder-te Luís, não sei. Nem sequer pesco grande coisa de filosofia, quanto mais ligá-la a religião, da qual nenhum católico com juízo me aceitaria como “membro”.
Em relação ao Hegel e ao grande sistema- pois- o problema é mesmo esse- ser um matacão de um sistema. De tal modo que separa porque não arreda pé. Porque se propagou a tudo e mais alguma coisa.
E, aquilo que digo mal de Hegel é principalmente a esse nível. È o responsável por essa trapaça da super-estrutura em evolução, essa arqui-armadilha de destino do tempo em que tudo se revia por encaixar lá dentro.
No campo da História, por exemplo e até da História da Arte o mal do Hegel é tamanho que ainda hoje é preciso deitar-se abaixo essa amarra.
Como se não bastasse, teve continuidade no Marxismo e ainda se consegue aliar ao determinismo de outro esquematismo que nos rouba a liberdade, a puta da psicanálise, como muito bem já tinha dito o Dragão.
Quanto ao Kierkegaard sempre me pareceu coisa menor que se lê em teenager.
Errata: pelas mãos —-> pelos dedos das mãos
E digo-te mais (e agora é que a zazie “flipa”) admiro imenso Hegel porque foi o último grande sistemático da filosofia ocidental, e que de certa forma incorporava esta tensão entre indivíduo e colectivo, entre imanência e transcendência. Todos os que o seguiram tiveram que tomar posição face à sua obra e de uma forma ou de outra polarizaram o que era a dialética Hegeliana. Mesmo os seus mais fortes antagonistas, como um Nietzsche ou um Kierkegaard, tinham sentimentos claramente ambivalentes face à sua filosofia.
Hegel foi o último homem a querer articular esses dois pólos e a empregar um esforço titânico nisso. Claro, isso faz da filosofia de Hegel uma espécie de totalitarismo com pretensões de abarcar tudo, mas tem a grande virtude e de certa forma a bela ingenuidade de ainda achar possível essa articulação dialética dos dois pólos que viriam a ser irremediavelmente separados até aos tempos de hoje.
Julgo que de contam pelas mãos as figuras da filosofia ocidental sobre as quais se pode dizer o que se pode dizer de Hegel: Existe uma filosofia antes de Hegel e uma filosofia depois de Hegel. Dos meus parcos conhecimentos, só a Platão, Descartes e Kant atribuíria essas honrarias.
OK
perfeito
(talvez estivesse apenas a ver os meus próprios fantasmas:))
tim claro que não é nada disso! Eu acho que Deus faz precisamente a ponte entre o puro indivíduo e o colectivo, mas de tal forma que um puro indivíduo que vá suficientemente fundo na sua individualidade O encontra, universalizando assim de forma surpreendente o que era íntimo (caso dos grandes artistas e de certa forma também o de Nietzsche). Também acontece o contrário, quem se debruçe de forma suficientemente aprofundada sobre o colectivo só consegue não se diluir nele se vir Deus a intervir simultaneamente no colectivo e no indivíduo. Enganas-te quanto à tua interpretação. Eu não disse que Deus era o colectivo, eu disse que Deus fazia a ponte entre o individual e o colectivo, sendo que é ao mesmo tempo o fim de ambos os pólos.
A questão é que removendo Deus da equação e deparando-te tu com a questão essencial da tua felicidade pessoal, deixa de haver um elo de ligação à colectividade. Deus é a única ponte e o único mediador entre essas duas realidades, o único simultaneamente profundamente individual e profundamente colectivo. “Morrendo” Este cais precisamente no pós-helegianismo que a zazie tanto ataca mas ao qual me parece que Nietzsche se acaba por referir por antítese tanto como um Marx. Em ambos os filósofos perde-se a ligação entre o individual e o colectivo, e ambos exacerbam cada um dos seus pólos.
E ainda não nos recuperámos desta polaridade trazida pelo fim do cristianismo como relevância filosófica. Ainda hoje vês que são preferidas ou as explicações altamente sociológicas (redutoras e que não oferecem respostas às verdadeiras questões) ou as explicações altamente pessoalistas (frequentemente obscurantistas e a puxar ao sentimento mais básico). A articulação entre o indivíduo e o colectivo está largamente deficiente. E é algo que sempre procurei resolver internamente, também porque herdei disso com o sangue familiar (de um lado altamente sociológico e científico, doutro altamente pessoalista e literário).
gostei muito deste diálogo e nomeadamente de algusn excertos da intervenção do Luís
existiu um, contudo, que me deixou particularmente preocupado
este:
“É Deus que é o mediador entre o indivíduo e a sociedade, e é Ele que faz depender a felicidade do indivíduo da felicidade do colectivo. Com Deus morto não há nenhum motivo pelo qual a felicidade individual liberta de qualquer preceito sociológico não tome o seu devido lugar e por isso é que Nietzsche me parece defender um certo humanismo.”
explico porque é que me deixou preocupado
irradia (impressão minha(?)) dele uma cosmovisão de Deus como o “Deus” do universo das abelhas ou dos formigueiros, o “Deus” do colectivismo biológico, o “Deus” da comunidade acima do índividuo
e o que é mais estúpido é que me parece que o Luís acredita nesta concepção de Deus menos que eu
mas a sensação está lá (e daí a minha preocupação)
Quanto ao humanismo não. Até acho que viu bem a doença do humano que é uma das formas mais fáceis de dissolver toda a potencialidade criativa no moralismo de grupo.
Mas é claro que filosofia não é sociologia. Ele até mandou aquela boca que para muitos o socialismo até bastaria…
ehehe
E tinha razão. Esse poder visonário do que foi o colectivo feito história e determinismo, e que vinha de Hegel, realizou-se passados uns anos de ele morrer.
1- Em relação à literatura tout cour, sim.
2- Não foi nada um ateu e muito menos a ausência de Deus tinha a ver com existência ateia. Tens de entender a gigantesca luta dele conra a razão. Porque não dá misturar o que é “panfletário” pela doença moralizante com filosofia religiosa. E o problema é esse. Se se pega em Nietzsche fora do que é filosofia, então encontras lá tudo, incluindo dezenas de frases que podem servir para o tal ateísmo. Mas não foi disso que ele falou, em termos de balanço de civilização. Percebes bem quando dizes que ele não se esconde atrás de iluminismos- precisamente- por isso é que a questão é esquecimento do Divino substituído por todos esses avatares dos novos deuses milagreiros da ciência.
3- Quanto à nostalgia cristã é claro que a não podia ter. Ainda por cima com toda aquela influência protestante e puritana, nem eu teria
“:O)))
4- A citação do Dostoievski é perfeita. É a que melhor complementa o Nietzshe. A consquência da morte de Deus é que outro deus vai (já foi) para o seu lugar .E tenderá a ir sempre às arrecuas, à medida do anão (homem) a olhar para o seu umbigo.
Quanto ao resto vai lá trocar ideias com o Dragão.
Palavra. Com ele vale a pena.
Beijocas
Como dizia Dostoievski nos seus Irmãos Karamazov: “Se Deus está morto, tudo é permitido”. E é preciso dizer isto com todo o desassombro, constatando meramente um facto (e aí o dragão diz muito bem). Não há um juízo, é uma mera consequência.
Gosto de Nietzsche precisamente porque foi dos poucos que pensou coerentemente esse mundo sem Deus. Aliás desde Nietzsche (e em menor grau do existencialismo) que a filosofia se tornou a maior xaropada cheia de verborreia pós-moderna e que na minha visão muito pessoal marca uma decadência clara da mesma (tipos como o Desidério Murcho dão-me uma vontade enorme de rir com a sua “filosofia positivista”, coisa ridícula a armar-se ao pingarelho e a arvorar-se em ciência de coisa nenhuma).
zazie não referi esses autores germânicos como “sábios injustiçados” mas sim como grandes vultos da literatura alemã. Goethe ou Hölderlin definiram a literatura alemã de uma forma que Nietzsche obviamente não fez. Dizer que Nietzsche escreveu “a melhor literatura alemã” é um claro overstatement.
No caso do último parágrafo não expliquei os meus motivos de discórdia. Aliás o facto de também não o ter feito com o cbs fez com que ele interpretasse nas minhas palavras uma qualquer tentativa conciliatória de Nietzsche com o cristianismo. Mas é precisamente o contrário. Admiro Nietzsche porque Nietzsche é precisamente irreconciliável com o cristianismo, e é o único que pensa coerentemente uma existência ateía. Por isso é que discordo inteiramente desta frase: “Tanto ou mais que a “morte de Deus”, o que atormentou Nietzsche foi o Seu esquecimento.”
Não é verdade, Nietzsche não se atormentava com o esquecimento de Deus. O que o atormentava precisamente era a manutenção de uma moral cuja origem e fundamento estava na existência de um Deus. Não existe qualquer nostalgia do divino em Nietzsche (pelo menos o divino cristão), e não se esconde atrás de nenhuma filosofia iluminista mais ou menos deísta para justificar um “humanismo esclarecido”. E aqui é que acho que o contributo de Nietzsche é genial.
É que ainda não vi ninguém a conseguir justificar coerentemente o sistema moral vigente sem que entre alguma ideia de transcendente. As tentativas mais antropológica-científicas da moda (como a ideia da moral egoísta em que tudo é feito para a sobrevivência individual) não respondem à questão fundamental que Nietzsche põe com toda a honestidade: o que impede o indivíduo de agir liberto de todas as normas morais tendo como meta a sua felicidade? É que a principal consequência da “morte de Deus” é precisamente a meu ver que o indivíduo deixa de estar ligado ao colectivo, a sua felicidade deixa de depender da felicidade do grupo. É Deus que é o mediador entre o indivíduo e a sociedade, e é Ele que faz depender a felicidade do indivíduo da felicidade do colectivo. Com Deus morto não há nenhum motivo pelo qual a felicidade individual liberta de qualquer preceito sociológico não tome o seu devido lugar e por isso é que Nietzsche me parece defender um certo humanismo. Também por isso é que acho que Nietzsche é absolutamente inapropriável por qualquer movimento sociológico, porque precisamente a sua filosofia é toda ela centrada na realização do indivíduo. Nietzsche tinha horror à maralha, qualquer que ela fosse.
Aliás, tu sabes tão bem que é assim que conheces as polémicas no Trento e no teu blogue.
E aí até foi coisa menor e sem visibilidade. Mas pegas em qualquer associação ateia e tens lá o Nietzsche a ser estropiado como exemplo de filósofo que substituiu Deus pelo super-homem.
Isto é genérico e não é sequer, nenhum fenómeno de agora e muito menos português.
Não existe, como o Dragão disse, filósofo mais maltratado.
Em contrapartida, vai lá ao blogue dele e vais ver quem é que sempre foi idolarado e aí sim, encontras o ponto de partida para grandes males de pensamento até aos nossos dias: o sistema determinístico hegeliano.
Nenhum dos que tu citaste foi ou é tão maltratado como Nietzsche. A nenhum tu consegues associar nazismos e toda a decadência contemporânea como se faz por todo o lado, tornando-se quase um lugar-comum.
Dos que enunciaste nenhum deles foi visionário. O Nietzshe foi. E nenhum deles anda na boca dos ateus militantes como arma de arremeço para a doutrinação ateia.
………….
O último parágrafo é do Dragão. Não sei em que discordas porque é fabulosa. É um dos melhores manifestos contra a substituição de Deus pelo anão umbiguista humano.
Só por este úlitmo parágrafo até v.s todos os católicos, deviam pegar no post e escarrapachá-lo nos blogues.
É que não é raro serem os não crentes os que melhor entendem o que é que o substituiu.
E, também não é raro (por cá até é usual) serem os crentes os que pior trabalho fazem na defesa do que acreditam.
Bastava pegar-se no jornal e ler os católicos que por aí andam e retirar as conclusões.
eish zazie, acho que o dragão exagera na sua exacerbação Nietzschiana…
Chamar a Nietzsche o sábio mais maltratado tirando Jesus Cristo é no mínimo duvidoso e então dizer que na obra dele estará provavelmente a melhor literatura alemã é difícil de sustentar. Nietzsche escreveu um único livro que é de facto na minha opinião uma grande obra literária e o meu livro dilecto do autor (Also sprach Zarathustra) mas pô-lo no mesmo barco do que Hölderlin, Goethe, Heine, Schiller ou mesmo Kafka ou Thomas Mann é que me parece um exercício de muita boa-vontade.
E depois, embora concorde com a generalidade do post discordo totalmente do último parágrafo (discordo da atribuição que o dragão faz a Nietzsche, toda ela):
Tanto ou mais que a “morte de Deus”, o que atormentou Nietzsche foi o Seu esquecimento. Isso e um encargo inestimável de que nunca será louvado o suficiente: o de dizer ao aleijadinho possesso algo que ele, hoje ainda mais que então, merece ouvir: “Tu, piolho cósmico, não és o umbigo nem a vedeta-mor do universo! Tu és apenas o protagonista duma tragédia. E quando te ensoberbesces, afinal, só te amesquinhas.”