Maneirismos e excitações por réplicas mortas
«The connoisseurs and I are at war, you know; and because I hate them, they think I hate Titian, and let them» (William Hogarth to Hester Thrale, in Anecdotes of Samuel Johnson 1786)
O espírito satírico de Hogarth nem num tratado estético que pretendeu sério e destinado a cultivar o bom gosto da sociedade da época, conseguiu ficar à porta.
Numa réplica do diálogo socrático a propósito do Belo, ilustrado na estatuária de Clito ,Hogarth serve-se das estátuas dispostas do jardim de Sir Henry Cheere, em Hyde Parks Corner, para exemplificar a os princípios necessários à beleza da composição, mas acaba por fazer uma leitura de duplo sentido entre o texto e sátira aos críticos da época.
Os jogos de sedução entre deuses emparelham com as quedas em desgraça dos poderosos desse mundo greco-romano.
O Apolo de Belveder dirige-se à Vénus de Médicis,
enquanto as restantes se entregam a jogos de crueldade onde o esplendor do seu passado ficou reduzido a antiqualhas.
Ao centro, César que está em vias de se estatelar da corda da roldana, caindo aos pés do Brutus que o assassinou;
o colosso de Hércules assoma mais alto que Laoconte, ao longe condenado pelos deuses, apenas por ter anunciado a trágica verdade.
Estas ruínas de jardim, não passam de signos mortos, vanitas despojadas do sentido divino, prontas a serem vendidas pelo melhor preço a qualquer coleccionador. Usadas como réplicas de cópias passadas de mão em mão, os méritos dos seres que encarnavam esvaziaram-se em prol da cotação dos críticos da moda, que as preenchem com os cultos shaftesburianos mais caducos.
Enquanto no tratado vai dizendo que o Antinous ilustra em perfeição a beleza das proporções do corpo humano, com a linha serpentina, citando as próprias palavras do pintor e teórico francês Dufresnoy, na gravura que ilustra a passagem não resiste a gozar com o estereótipo em que este classicismo tinha sido convertido.
Quem dele se aproxima, todo empertigado, dando-lhe a mão em gesto de assédio, não é mais que John Essex, o famoso mestre de dança que Hogarth já havia satirizado no Rake’s Progres.
Com um pedante tão impertinente a admirá-lo, até o belo e divino moço, amante do Imperador Adriano, parece preferir virar-se para a Vénus de Médicis. O admirador da cópia do cânone masculino desta estância não é mais que um artista dançarino, cujos trejeitos eram tão úteis quanto a estatuária replicada para animar os salões dos possidónios londrinos.
Ver: Ronald Paulson, Hogarth, Volume III: Art and Politics 1750-1764
*Na verdade, a estátua representada é um cópia do Hermes de Praxíteles que na altura era confundida com uma figuração de Antinous
2 comments on “Maneirismos e excitações por réplicas mortas”
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ehehe
“muito obrigados, muito obrigados” que isto foi mais “recortes”. Estava com ideia de fazer aquela macacada de se passar com o rato em cima da imagem e saltarem partes dela cá para fora, mas não tive pachorra.
Beijocotas
(este Hogarth era muito maluco)
Brilhante! Se eu fosse comentador desportivo, diria que estes dois últimos posts estão “ao teu melhor nível”. Divertidíssimo, com as legendas todas e um muito útil hipertexto. E a “Venus mise a nu par ses admirateurs, même”… já entra pela genialidade.
Grandes beijocas.