A Procissão de Corpus
« Os merceeiros, vendedores de especiarias e boticários conduziam, logo atrás dos vidreiros, um descomunal gigante, que contrastava com um pequeno anjo, que parecia dirigi-lo. Aquela espécie de Golias excedia em altura quatro torres de madeira, duas das quais pertenciam aos correeiros, e duas aos cortadores. A imediata representação, ordenada pelos sapateiros, mostrava mais arte e despertava, talvez mais que todas as outras, a atenção dos espectadores. Vinha a ser o dragão infernal, sarapintado de vivas cores, que vigiava dous diabos, os quais procuravam induzir dous frades noviços a voltarem aos deleites do mundo, ao que eles mostravam resistir heroicamente, posto que, como de reserva aos dous infernais pregadores, os tosadores acompanhassem dous diabretes espertos, prontos a socorrer os seus discretos colegas. Se, porém, como autores dramáticos os sapateiros levavam imensa vantagem aos mesteirais dos ofícios imediatos no préstito, nem por isso vinte e quatro alfaiates deixavam de pavonear-se após eles ao redor da serpe tentadora da nossa mãe Eva, a que fazia sombra uma torre, solidíssima na aparência. Mas se, pela excelente pintura da sua charola, os alfaiates tinham justos motivos de orgulho, mais justa era a vaidade com que os carpinteiros da Ribeira e os calafates, em número de trinta e oito, arrastavam uma nau e uma galé, armadas e empavesadas de muitas cores, cujos mastros quase que se elevavam à altura dos edifícios, e cujas vergas quase topavam com os balcões e frestas da Padaria e passavam a custo pela Porta do Ferro. Os pulverulentos pergaminhos conservaram-nos a memória da Representação da Dama em que figuravam também dous diabos, e que estava a cargo dos esparteiros. Em que consistia esta representação ignoramo-lo hoje; mas, se a avaliarmos pelo que sabemos da antiga procissão de Corpus em diversas partes do reino, pudemos conjeturar que não seria demasiado edificativa. De todos os outros mesteres, cujos membros, em maior ou menor número, ajudavam a tecer aquela enfiada de cenas ridículas ou brutescas, distinguiam-se, pela singularidade das invenções que ostentavam, primeiramente os pedreiros e carpinteiros pelo seu engenho ou máquina de guerra, servida por dous feios demônios, e os armeiros pelo seu sagitário, símbolo do soldado peão, e no meio destas duas corporações os tanoeiros por uma torre grandemente historiada e semelhante à dos correeiros e cortadores. Os moedeiros, corretores, tabeliães e mercadores, como mesteres mais nobres, fechavam aquele extenso séquito. Danças d’espadas, danças mouriscas, danças de pélas ou mulheres sustentadas sobre os ombros de outras, bailando e volteando conjuntamente; tudo, enfim, quanto se possa imaginar de caricatura, de burlesco, de doudejante servia de moldura a este quadro singular, em cujo topo figuravam alguns magistrados municipais, e sobre o qual flutua¬vam dezenas de pendões, bandeiras e guiões variegados. Como contraste a estas visualidades heteróclitas, a esta espécie de sonho de pesadelo, seguiam-se as comunidades monásticas, mancha escura no dorso daquela imensa cobra que se estirava pelas ruas de Lisboa: frades negros, frades brancos e pretos, frades crises, frases pardos, frades de todas as cores tristes; agostinhos, bentos, bernardos, domínicos, franciscanos, beguinos. Depois, um sem-número de cavaleiros de Crista, do Hospital, d’Avis, de Santiago, precedidos dos respectivos mestres e comendadores e segui¬das dos freires leigos e serventes d’armas. Depois, os magistrados da corte, os oficiais da coroa e o próprio monarca rodeavam a hóstia triunfante nas mãos do Bispo de Lisboa e sustentavam as varas de riquíssimo pálio. O esplêndido dos trajas cortesãos, as telas custosas das vestes sacerdotais, as renques de tochas acesas que faziam cintilar as lhamas e brocados, os arrases, que, formando as paredes das ruas, serviam de decoração à cena, os tangeres e folias, que se entressachavam com os diversos grupos, o sussurro do povo, semelhante ao rugido longínquo do mar, o perfume de incenso, que se espalhava em rolos de fumo transparente, a fragrância das murtas e rosmaninhos, de que o chão estava juncado, produziam um composto de sensações capazes ainda hoje de excitar o entusiasmo frenético das multidões, quanto mais numa época em que as crenças, tão ardentes como grosseiras e sinceras, santificavam as cenas mais burlescas e, até, mais indecentes, associando-as ao culto e fazendo delas, como diria Sterne, parte instrumental da religião.
Alexandre Herculano, o monge de Císter.
- Imagens: serpe do Infante D. Fernando de Serpa (capitel da igreja de Santa Maria do Castelo de Serpa).
festas mouriscas – portal da Igreja Matriz do Alvor
2 comments on “A Procissão de Corpus”
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E disseste nessa evocação.
Beijinhos e obrigada pela partilha.
Olha, eu falei do desfile como era há cem anos, muito mais morigerado, ehehehe.
Jok.