Quando o veado dá bode
O animal era denominado tachamury entre os judeus ou jamur para os árabes. De acordo com o Talmude até punham ovos gigantes, cujas propriedades medicinais os tornavam muito disputados.
Santo Epifânio conta a lenda dos aptalos, velozes como o vento mas enamorados das águas do rio Eufrates. Ficavam de tal modo embriagados de felicidades por as beberem que acabavam por emaranhar as hastes nos ramos das árvores. Sem se conseguirem desprender, tornavam-se presas fáceis dos caçadores que deste modo os capturavam.
Guilherme da Normandia, no seu Bestiário Divino faz desta lenda uma alegoria cristã em que o antílope- aptalos-traguelafos se assemelha ao cristão que só pensa nos prazeres da vida e se afasta do estudo da doutrina sagrada.
Por outro lado, o próprio cervo também nem sempre é assim tão casto, já que dele se aproxima a divindade pagã do homem-veado- o Cernunnos celta ou mesmo outros chifrados mais antigos das lendas da suméria.
Estes cultos cruzam-se com os ritos de iniciação que na Grécia tiveram por patrona Artemísia dos sacrifício de Acteon. Em honra da casta deusa que caça veados (elaphêbolos), na variante Brauroniana, cujo culto sangrento, introduzido por Licurgo, de que já falámos a propósito das filhas de Lycaon,era feito com sacrifício de jovens efebos.
No final do Império Romano, as tradições oriundas da Babilónia tendem a misturar-se, actualizando-se muitos ritos em torno da divindade do veado-branco- o mesmo que aparece nas lendas do Graal- encontrá-lo era presságio de algum estranho acontecimento.
A tradição pagã das mascaradas dos ritos dos solstícios é uma derivação destes ritos que devem ter-se misturado com práticas heréticas. Na procissão da missa negra, como Bosch mostra nas Tentações de Santo Antão, um mitrado dirige-se em parelha com um personagem com cabeça de veado para a entrada do cu do demo.
Com o nosso D. Fuas Roupinho, a ideia do diabo era a mesma, e foi tão lesto quanto estes aptalos lendários, mas bem que acabou por partir os cornos lá em baixo.
Entretanto, as caçadas a homossexuais e adúlteros que eram habituais no dia do veado, como reminiscências destes charivaris campestres, também já se inverteram.
Consta que agora eles é que aproveitam os santos populares para se caçarem com patrocínios camarários.
E quem nos diz que a própria besta do Apocalipse não se mascara com penas de avestruz, para desfilar na parada.
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ver também: L. Charbonneau-Lassay, El bestiario de Cristo. El simbolismo animal en la Antuguedad y la Edad Media, José J. de Olañeta, Editor, Palma de Mallorca, 1997, vol.2.
14 comments on “Quando o veado dá bode”
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é engraçado Zazie, já viste que andamos para aqui todos redimidos contigo? Com o nariz a cheirar gárgulas e as pestanas nos cadeirões?
beijocas
z
Olha, parece que se perdeu o outro comentário.
Estava-me a rir com essa dos sítios maravilhosos. Rapaz- eu vivo na mesma santa terrinha que tu
“:O)))))
Está bem visto, és capaz de ter razão. Já fazes aqui um excelente trabalho.
Essas coisas das publicações de livros têm sempre muita piada.
Nem quero entrar em detalhes- mas ia jurar que mais se lê o que se escreve à borla online que o mesmo se fosse comprado em livro.
Por exemplo- os links- não se substituem facilmente links num livro. E as imagens- a qualidade de imagem- já viste em quanto ficava um livro para se conseguir a qualidade de imagem que se consegue num suporte virtual?
De qualquer modo isto é mesmo assim- livros ou são investigação e aí é coisa académica- ou divulgação e aí há-de ser coisa nem sei para quê. Para quem ande a esmifrar-se por dizer que tem um livro publicado, nem que depois o não venda e ainda tenha de o pagar à editora…
“;O)))
queixa à linha de denúncia? isso querias tu… ;). Conheces gente interessante e vives em sítios fantásticos, tanto quanto esses bicharocos e esses mundos míticos. Eu continuo aqui num país um bocadinho mais tristonho e que não mudou tanto quanto tu pensas. Mas vá lá, fiquei a saber umas coisas catitas sobre veados e bichos cornudos. Porque é que não publicas um livro com estas coisas? Estou a falar a sério.
lá vem a brigada dos costumes…
ehehe
oi bacano- vens em nome de boss veado ou boss antílope?
ou foi rena que se queixou
hummmmmmm….?
ehehe
Só para ter este prazerzinho de apareceres por cá, valeu a pena
“:OP
bisou
V.são uns grandes patuscos- ainda passam pelo que não são, com tanto prurido e auréola na vealhada gay.
É mentira, que os gajos agora se caçam mais do que são caçados. E que ainda têm brigadas de costumes para que ninguém possa mandar umas bocas?
ahahah
Ora vai lá botar queixa à linha da denúncia a ver se me ralo.
“Entretanto, as caçadas a homossexuais e adúlteros que eram habituais no dia do veado, como reminiscências destes charivaris campestres, também já se inverteram.”
Já? A sério?… Zazie, zazie, não confundas o Mundo com meia dúzia de bares e salões literários à volta do Largo do Chiado. Ó, se ao menos o mundo fosse a Web.2.
Oh, What a wonderful world it would be!
És uma óptima historiadora (aí nessa tua especialidade), mas estás pouco atenta ao que se passa à tua volta.
beijocas
ahaha
Pois está. Aquilo é uma anamorfose com uma brincadeira de um conto popular.
A Alice já é tão conhecida que não lhe ia acrescentar nada. Mas coisas de espelhos já ando a pensar há muito.
beijocas
Zazie, por debaixo do demo nas tentações, está lá uma mulher de touca branca numa casinha?
quando pões coisas da Alice e do gato-que-ri?
bjk
z
As coisas que tu vais buscar! Zazie!
É verdade, ó Mutus Liber- o que eu gostei do D. Fuinha de roupinha
“:O))))
ehehe
Olá. Se não estou em erro v. é o que deixou de ser de bode mas ainda tem um niquinho de enxofre, né?
Não leve a mal. Eu gosto de brincar.
A última parte não é lixo- acho eu. E ser conservador é óptimo, desde que se conserve o que é bom.
Mas nem foi isso, foi mesmo uma continuação da ideia. Eu é que tenho o post incompleto, porque me faltava referir os penitenciais no dia do veado. E ainda me faltava falar do teatro medieval e dos fabliaux onde tudo isto já era satirizado.
A procissão gay tem a sua lógica no seguimento daquele entremez de mascarados e ficava ainda melhor se eu tivesse junto o charivari do romance de Fauvel.
Ao contrário do que possa parecer, os dias do mundo-às-avessas são tradição dos primórdios medievais e bem católicos (no sentido em que o paganismo se misturava com o catolicismo).
A diferença é que hoje é que se esqueceu o underground e anda tudo a querer passar por gente muito respeitável- muito “às direitas”, muito igualzinha- mesmo quando continua estas mascaradas em autênticos ideais de mundos às avessas.
Beijocas, Pedro.
Bem sei que não costumo comentar aqui (em boa verdade porque não costumo concordar lol) mas achei o post realmente interessante! Muito bom Zazie.
ps: a última parte do ataque á comunidade gay enfim… não leve a peito mas é uma opinião de lixo conservador…
Na praia da Nazaré
Houve uma grande confusão!
Dom Afonso de Roupinho
E o Dom Fuas de Roupão!