Uma barbadinha do deserto no Piemonte
Os frescos de uma pequena capela dedicada a Santa Maria dos Campos, à saída de Londiona, em Novara, na região do Piemonte, incluem uma misteriosa imagem feminina que tem gerado diversas interpretações. Entre uma representação de S. Bernardino de Assis e de Santo Antão, a jovem mulher, de cabelos repuxados em forma de meia lua, túnica caída e seios à mostra, amamenta uma criança.
Foi colocada na net, num curioso álbum de fotografias e têm-lhe sido alvitradas pertinentes interpretações. Desde uma variação da Virgem como Via Lactea, numa apropriação do mito do Juno e Hércules, até outras hipóteses mais pagãs, associadas aos cultos da fertilidade ou mesmo como uma variação das tentações do deserto a que Santo Antão foi sujeito.
Pois bem, o facto da intrigante lactante se encontrar ao lado de santo patrono dos eremitas – ele próprio nascido no Egipto e sujeito às tentações do demo no deserto, e o mesmo tipo de túnica bizantina que a figura feminina usa, tudo indica que se trata de uma santa dos cultos ortodoxos- neste caso Teodora de Alexandria, que viveu no século V da era de Cristo, festejada na Igreja Ortodoxa no dia 11 de Setembro.
Na Lenda Dourada de Jacques de Voragine, conta-se a vida desta dama de alta estirpe que acaba por ter uma vida de provações e tentações carnais. Primeiro foi o demónio que a levou ao adultério. Para penar esta traição esponsal, corta o cabelo, veste as calças do marido e foge entra num ermo convento masculino como um belo Theodorus. Até ao dia em que uma moça se apaixona por ela e assedia no campo, a tal ponto que a bela Teordora teve de a repudiar.
A desdenhosa moça não perdoou a rejeição e vingou-se, seduzindo fisicamente outro viajante. Este, por acaso, era bem homem e o resultado foi nascer bebé deste ressabiamento.
Teodoro foi acusada de ser o pai e expulsa do convento. Levou com ela a criança a quem alimentou com os seus seios. E deve ser esta a passagem que se descreve na iconografia, no meio dos santos eremitas.
Durante sete anos Teodora penou no ermo com o filho, atazanada por mil tentações demoníacas, até que voltar a ser admitida no convento, juntamente com o filho. À hora da morte deu-se o milagre- o abade teve uma visão acerca da injustiça para com o falso monge Teodoro, descobrindo-se depois de morto que afinal era uma mulher. Avisado o marido de Teodora acaba por morrer junto com ela. O filho destas falsas traições e castidades punitiva acabou por se tornar abado do convento, a partir do qual o culto de Santa Teodora se difundiu.
A particularidade de aparecer nos belos frescos da modesta capela do Piemonte, pode também ligar-se à Virgem dos Campos- da virgem lactante- a cujo culto foi erigida a própria capela italiana – Santa Maria dos Campos- numa assimilação da freira Teodora das instigações da carne, que dos ermos lugares do Oriente fez frutificar o corpo em prol do espírito.
Acrescento:
Esta hipótese de se tratar de Teodora de Alexandria é isso mesmo, apenas uma hipótese, tendo em conta a informação que o santo que está a seu lado será Santo Antão. Mas pode tratar-se de S. Roque (tudo depende do tipo de bastão que tem na mão), faltando-nos as imagens para o confirmar.
5 comments on “Uma barbadinha do deserto no Piemonte”
Comments are closed.
Olá Frioleiras, beijinhos e saudades. Esta história é mesmo muito curiosa.
………….
E pior que fracturante, Harry- aquilo foi assédio e amor à Romeu e Julieta que ainda frutificou em convento.
“:O))
Muito bom… é uma historia estranhamente fracturante passada em tempos muito pouco fracturantes :):):):):):)
há muito tempo que não passava por aqui… e gostei,
imenso,
deste post………
Viva CCz,
É verdade, a Legenda (ou Lenda) Dourada tem histórias fabulosas. Eu é que não a conheci em miúda.
Quanto a esta história faltam-me as imagens para a tirar algumas dúvidas.
Vou ver se o autor as fotografias as arranja porque os frescos são espantosos e deve ser uma série dedicada à Virgem. Como acrescentei agora, se o bastão não tiver a forma de um tau, então a hipótese mais provável é tratar-se de S. Roque acompanhado da Virgem do Leite. Seja como for é uma incografia incrível e sem paralelos, tanto quanto sei.
As interpretações pagãs é que só as seguiria se não existisse mais nada. Porque não era nada provável incluir uma imagem pagã naquele espaço dedicado e na companhia dos restantes santos.
Quando tinha 12/13 anos adorava ler um livro da minha mãe chamado “A Legenda Dourada”.
.
Esse livro era composto por n estórias sobre a vida e as aventuras dos heróis da mitologia grega.
.
Essa magia nunca me abandonou, e é um gosto, um momento de repouso vir aqui ao Cocanha descobrir novas estórias de outras mitologias.
.
Com isto, lembrei-me da mitologia viking… sempre achei fascinante a ideia de os deuses acabarem derrotados pelos humanos… se calhar algo à atenção do Joaquim.