Esqueletos no armário
A descoberta deve-se a Judy Egerton que escreveu um textinho bem engraçado que passo a resumir.
Como se sabe, o Hogarth era danado para apanhar os tiques dos novos-ricos afrancesados e ainda mais para imprimir aquele sentido de colapso tragicómico de todos os personagens, tão artificiais que nunca conseguiam esconder as marcas da decadência, em particular do grande mal da época – a sífilis.
Na série Mariage a-la-mode, que trata de um casamento arranjado por interesses recíprocos- o dinheiro em falta por parte do pai do noivo tão brasonado quando badalhoco, e o satus em falta que o da noiva conseguia por esta forma de suposta ascensão social.
É claro que o casório vai acabar em desgraça, começando pelas traições recíprocas, passando por assassinato e prisão, até acabar na morte da desgraçada da moça burguesa, feita condessa à pressa.
A história dos esqueletos aparece no 3º quadro da série- The Inspection- quando o visconde, acompanhado de uma prostituta, vai ao médico reclamar pela falta de resultado das pílulas para sífilis que este lhes havia receitado.
O médico é mais outro fanfarrão- um “quack doctor”, como lhes chamavam- por muito que doure as pílulas (uma delas estrategicamente colocada entre os genitais do desafortunado sifilítico) e apresente o seu tratado em cima da mesa (aberto nas extravagantes invenções de “endireita” do Monsieur de La Pillule), ele próprio testemunha nas deformações físicas a ruína da doença, efeito de “dois minutos com Vénus que resultavam em 2 anos com mercúrio”. Aquelas pernas bambas, como já o haviam referido outros estudiosos, e a facies de buldogue não enganam- a doença já lá estava entranhada e tudo o resto não passam de vaidades de curta duração- a vanitas da caveira assim o glosa.
O detalhe que tem escapado está mais escondido. A decorar o “consultório” este pseudo erudito tem um autêntico gabinete de curiosidades estapafúrdias- do tradicional corcodilo pendurado no tecto, com ovo de avestruz suspenso, aos monstinhos nascituros, nada falta. Até sobra- sobram mocassins; um chapéu de índio canadiano; um pente esquimó; banqueta dos mesmos confins e mais uma série de excentricidades em que se destaca um cabeça com fémur por trás a par de um corno de nerval, tão ameaçador quanto a varinha que furibundo visconde agita na mão.
A grande irreverência acontece em baixo abaixo- enfiados no armário, estão um esqueleto no assédio a um escorchado sob o olhar esbugalhado de uma peruca de “queer” pendurada num cabide, que mais parece doação de cabeça inteira de outro “pinguim apinocado” que morreu de espanto ao assistir à cena.
Judy Egerton confirma que a expressão “skeleton in the cupboard” só aparece no Oxford Dictionary em 1845, ainda que acrescente em nota que devia ser conhecida antes- O quadro de Hogarth data de 1745. Como notou o arguto do nosso amigo Antónimo – o mesmo é capaz de ter acontecido com a ilustração da palavra “queer”. Na sátira aos efeminados afrancesados, ao estilo mais “macarroni” de cabeleira (1761), chama-lhe ele- o “Queerinthian” e o uso da palavra como sinónimo de homossexual só é conhecida no século XIX.
Se os pinguins queer já estavam a “sair do armário” e faziam carreira social que hoje em dia é mato, as consequências das dívidas, que os favores burgueses fazem pagar ao corpo, guardavam-se bem escondidas, não fosse o negócio estragar o engano dourado da pílula.
- Consultar: Judy Egerton, Hogarth’s Marriage a-la-mode, London, National Gallery Publications, 1997.
2 comments on “Esqueletos no armário”
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Obrigada e beijocas.
deliciosas…
absolutamente deliciosas as tuas historinhas …