blémios, acéfalos e outras réplicas monofisitas pós-modernas
O caso dos blémios – povos acéfalos- com olhos, boca e ouvidos no peito, é paradigmático nas migrações que vai tendo ao longo dos séculos.
De relatos lendários do Oriente, passaram depois para o Ocidente, através de textos Ctésias de Cnido (séc. IV aC)- autor do De Indica, médico na corte do Rei da Pérsia Artexerxes II e vão continuar a ser vistos muito mais tarde.
Estes seres viviam sempre nas margens do mundo civilizado, saltitando para locais desconhecidos, à medida que esse mundo é trilhado pelos viajantes.
Migram para o Brasil- onde aparecem ao lado dos índios; associam-se à busca do El Dorado e ainda em finais do século XVI,
Sir Walter Raleight, assegurava tê-los visto- aos Ewaipanoma – na Guiana .
Quanto à sua natureza, bem como às das restantes raças fantásticas e seres monstruosos, S.to Agostinho formulou as principais questões teóricas que ainda são pertinentes – só podendo ser animais ou descendentes de Adão, a monstruosidade que nos impressiona derivava de não captarmos o sentido do Todo da Criação divina. Pelo que, no nosso parcelar entendimento, esta fealdade servia para nos retribuir a garantia na coesão da nossa própria humanidade.
Pelo meio, os acéfalos-blémios ainda foram associados ao homem selvagem. Os exemplares do fresco de uma igreja da Dinamarca, exemplificam, de forma praticamente exemplar esses relatos de gigantes marrecos, olhos esbugalhados; narizes achatados e dentes de javali que se armavam de maças e vinham ao encontro dos que se aventuravam na floresta.
Mas, o mesmo nome- acéfalos, também resulta de outra questão menos selvagem- a querela que levou à divisão dos cristãos bizantinos e se multiplicou em seitas rivais- por via da problemática da relação entre a natureza divina e humana na figura de Cristo.
Os monofisitas defendiam a exclusividade de uma só pessoa e uma só ligação entre Cristo Homem e Deus- a natureza de Cristo era real e humana e evoluiu para o divino, nele se unindo. Em oposição, os nestorianos – com Nestor, Patriarca de Alexandria a teorizá-la, defendiam a existência de duas naturezas na mesma pessoa. Cristo era Deus-Jesus unidos pelo logos em Cristo. Daqui saiu a corrente cristológica que não separa Deus da sua manifestação terrena e que teve pontos de ligação com os próprios luteranos da Reforma.
A luta entre os cristãos rivais foi de tal modo cruel que Ammianus Marcellinus, historiador romano (325-390), afirmou que ultrapassavam a fúria dos animais selvagens para com os homens.
A problemática foi debatida no primeiro Concílio de Niceia (325)e repetida mais de um século depois, no Concílio de Calcedónia (451). Estes heréticos (que se foram dividindo em várias seitas), a partir dos ultra-eutychianos, passam a ser denominados acéfalos – por não terem cabeça de bispo.
O mais curioso é que estes acéfalos do deserto da heresia se assemelham muito aos povos das margens do mundo civilizado. E a confusão dos nomes revestia-se também destes dois aspectos. O antigo Patriarca de Antióquia- Nestor- anos depois de repelido para o deserto pela ortodoxia, acabou por ser raptado por uma tribo nómada de blémios.
Não se tratou de rapto entre variantes de raças fantástica- o acéfalo herético foi levado por antigos praticantes de cultos pagãos do Egipto, que ainda se mantinham activos – os blémios adoradores de Isis.
E foi assim, entre lutas e heresias que, ao contrário do que poderia parecer, mais se foi desenvolvendo e propagando o cristianismo.
Quanto à saga do tribalismo dos acéfalos também dá ideia que não acabou.
Seguindo alguns exemplos de excursões circenses entre ateus militantes pós-modernos e pastores evangélicos, a heresia não só permanece como são os próprios cientóinos monofisitas que também a replicam, com a ajuda dos pastores-ultra, mais mediáticos.
Este vídeo , que o Tim se lembrou de postar, ao pretender caricaturar as eternas lutas das religiões, acaba por o exemplificar às avessas, incluindo nos mil e tantos comentários reactivos.
Os Dawkins e Hitchens, empenhados em afirmar a natureza única da matéria- julgam-se capazes de cortar a cabeça teísta mas acabam a receber com dezenas delas em troca.
Todas elas feitas divinizações “nestorianas”, que tanto espelham princípio criador em Cristo, como em budas ou profetas corânicos, já que só viajando no tempo e doutrinando o tal “elo perdido” é que o ateísmo poderia evitar a complicação da humanidade ter tantas crenças quantas civilizações milenares.
- Consultar:
- Claude Lecouteaux, Les monsters dans la pensée médiévale eurpéenne, P.U.P.S., Paris, 1993.
- DUCHESNE, Histoire Ancienne de l’eglise, III, Paris, 1910.
- MICHAEL SYRUS , On the Persian Nestorians: the Monophysite historians, SYRUS, ed. CHABOT, Paris, 1899.
- Apologética de Philoxenus- aqui e também aqui