A Cruz e o trapézio
Recordando Bénard da Costa
«(…) Se, em nome da lei da liberdade religiosa, se começa a banir cruzes de escolas, terão pensado os libertários onde se iria parar, se quisessem ser inteiramente coerentes?
Dou três exemplos, mas podia dar trinta.
a) Em primeiro lugar, era preciso mudar de bandeira. Efectivamente, mesmo a actual Bandeira Nacional, aprovada pela Assembleia Constituinte de 1911, certamente insuspeita de qualquer laivo clerical, mostra a esfera armilar e o escudo com “o campo branco das quinas”, que nela figuram desde D. João I e resistiram às mudanças de D. Manuel, D. João VI ou D. Pedro IV. As cinco quinas figuram o quê? Como toda a gente sabe, ou devia saber, figuram as cinco chagas de Cristo, que Este terá mostrado a D. Afonso Henriques quando lhe apareceu em Ourique. A aparição não tem fundamente histórico e foi patranha inventada, vários séculos depois, para justificar a suposta origem divina da independência e do país. Mas o caso pouco interessa a não ser a interesseiros historiadores, com particular relevo para os de Alcobaça em tempos de ocupação espanhola. Com os tempos – e tantos tempos são – tornou-se um símbolo cultural. Abel Botelho, Columbano, João Chagas, José Afonso Pala e António Ladislau Pereira, os autores da Bandeira verde e encarnada, ainda levaram algumas “bicadas”. Mas foram muitos mais as dos que queriam conservar o azul e branco (Junqueiro, Braancamp Freire ou António Arroio) do que as dos recordadores de Ourique e das feridas do Senhor. A Bandeira ainda hoje é vulgarmente conhecida por “bandeira das quinas” (o que Pessoa achou providencial) e não recordo, nem mesmo do mais fanático anticlerical (aquele que, na minha infância, me aterrorizava aos gritos de “Viva a República! Abaixo a Padralhada”), qualquer ataque a essa simbologia primacial. Mas, em nome de tal “liberdade religiosa”, não faltaria alguma razão aos inflamados de agora, se levassem a lógica às de cabo, em se insurgir contra tal marca no símbolo da Pátria, que, se não erro, ainda vale aos que a desrespeitem uma pena de três meses a um ano de cadeia.
b) A recente revisão da Concordata manteve como feriados nacionais sete datas de conotação obviamente religiosa e obviamente católica. Dois deles (8 de Dezembro e 15 de Agosto) celebram a Imaculada Conceição de Maria e a Assunção da Virgem aos céus, em corpo e alma. São dogmas relativamente recentes (1854 e 1950, respectivamente) e que, mesmo entre ortodoxíssimos católicos, levantaram, à época em que foram proclamados, rijas polémicas. Alguém estremece quando descansa nessas datas, considerando-as absurda intromissão da Igreja na sua vida privada?
E já nem sequer falo do Natal, celebração de acontecimento por demais conhecida, e feriado em quase todo o mundo ocidental. É verdade que o fundamentalismo americano, desde há alguns anos, começou a fazer campanha contra o “Merry Christmas”, substituindo-o por “Season’s Greetings”. Ouvi dizer que, no ano passado, o presidente Bush, na sua mensagem de Natal, omitiu, pela primeira vez, a palavra “Christmas” para ser mais “politicamente correcto”. Não me digam que o Bush=Hitler foi mero lapso, fonte de liberdade e que nele se inspiram os que agora clamam. Já tenho visto contradições maiores.
c) O Presidente da República tem residência oficial em Belém. Não seria de mudar o nome ao sítio que recorda presépios e Meninos virginalmente nascidos? Não será demais que a Belém se some S. Bento, como sede da Assembleia da República e residência oficial do primeiro-ministro? Do Calvário, em Lisboa, à rua da Gólgota, da Agustina, no Porto quantos nomes canónicos ou santificados por essas cidades, vilas, aldeias, ruas ou largos de Portugal? Não é tempo de mudar esses nomes todos que tresandam a sacristia?
Ou será que Cristo e a Cruz só são de banir quando se trata de criancinhas? Fica a pergunta, mas é de bom tamanho.
3. Nos casos evocados, como no caso das cruzes nas escolas, a dimensão do símbolo ultrapassa, de longe, a questão religiosa para ser sobretudo uma questão cultural. Entendam-me bem: para um católico (no caso da Cruz para qualquer cristão, seja ele protestante ou ortodoxo) a Cruz é o símbolo supremo da morte redentora de Jesus, a quem chamavam de Cristo, e, como tal ou enquanto tal, nenhuma outra simbologia se sobrepõe a essa. Mas, para os outros portugueses, mesmo os que mais professem o ateísmo, o símbolo é o símbolo de uma cultura que, goste-se ou não, queira-se ou não, desde a fundação da nacionalidade foi e é critério. Mesmo aqueles para quem Jesus foi só um dos milhares de homens que sofreu uma das mais horríveis formas de morte que homens infligiram a outros homens, mesmo até para aqueles que põem em causa a sua existência histórica, a Cruz é um elemento sociologicamente identificador, que assinala a nossa pertença a uma determinada civilização e a uma determinada cultura. A História que culminou nela e que foi narrada pelos quatro evangelistas (eventualmente por muitos outros que a Igreja Católica não aceita como testemunhos fidedignos e a que continua a chamar “textos apócrifos”) é a História sem a qual nada compreenderíamos da História de Portugal e da esmagadora maioria da poesia e literatura portuguesas ou da arte portuguesa. Suponha-se uma leitura de Os Lusíadas, do Crime do Padre Amaro ou da Relíquia, da Mensagem ou do pagão Caeiro, sem referência a essa cultura informadora e formadora. Haveria maneira de compreender algo? E dispenso-me de chegar até José Saramago, obcecado por essa cultura, para não dizer por essa religião. Suponha-se uma visita a qualquer dos nossos museus, sem qualquer familiaridade com a religião católica. O “maravilhoso cristão”, para quem o não queira interpretar de outro modo, é a chave de acesso, como chaves de acesso são as mitologias greco-romanas, não conhecendo eu ninguém que creia em Zeus ou em Vénus, em Ares ou em Mercúrio. Suponha-se que era de tradição uma reprodução da Vénus de Milo nas escolas. Assistir-se-ia a um clamor nacional, invocando a liberdade religiosa para varrer a Vénus de peitos desnudos da vista das criancinhas? Só se fosse pelos ditos peitos, em nome de moral assaz reaccionária. Por causa da deusa, não seria certamente.
4. No seu infeliz artigo, Joana Amaral Dias recorda que, de acordo com a Constituição de 76 e suas várias revisões, “o ensino público não será confessional”. A presença da Cruz nas escolas determina a confessionalidade? Se assim fosse, a presença do retrato do Presidente da República, em inúmeros edifícios públicos, ofenderia também os monárquicos, que têm tanto direito a sê-lo como qualquer outro português de ser politicamente o que lhe apeteça. Como a presença da coroa (por exemplo no Teatro Nacional de São Carlos) ofenderia os republicanos, diariamente agredidos por armas reais e brasões ou outras insígnias semelhantes, patentes na maior parte dos palácios nos chamados monumentos nacionais.
“Mas a República é laica”, observou a jovem mandatária, reconhecendo embora (muito favor dela) que “cada um pode ter as convicções que quiser”.
Chegamos a uma palavra que tem sido uma das maiores fontes de equívocos e de interpretações dúbias. Laico (do latim laicu) significa apenas que se não é eclesiástico religioso. Há um clero regular (o clero das ordens religiosas) e há um clero laico (o clero que não pertence a nenhuma dessas ordens e que também se costuma chamar clero diocesano). Depois há os leigos (e laico e leigo são termos equivalentes) que são todos aqueles que não foram ordenados padres, ou seja a esmagadora maioria da população. Os leigos (todos quantos não receberam o sacramento da Ordem) tanto podem ser crentes como não-crentes. Quando a Igreja se dirige aos leigos, dirige-se a todos eles, embora só os que a reconheçam enquanto tal estejam obrigados a obedecer-lhe ou sequer a ouvi-la. Eu sou tão laico como Jerónimo de Sousa ou Francisco Louçã, no sentido em que a palavra nada mais diz senão que nem eu nem eles professámos ou recebemos Ordem.
É certo que, por um galicismo de costas muito largas, laicismo é também a doutrina política que proclama a laicidade absoluta do Estado, entendendo-se por ela, comummente, a neutralidade perante todas as crenças religiosas e perante crentes e não-crentes. Mas, mesmo nessa latíssima acepção (gramaticalmente abusiva), o Estado não está obrigado a fazer tábua rasa dos valores de que é por igual herdeiro. Não está obrigado, e muito menos o deve fazer, sob pena de atentar gravemente contra direitos culturais igualmente reconhecidos e que o impedem de apagar porção relevante do nosso passado e da nossa história. É verdade que a Revolução Francesa o tentou fazer, mudando tudo, desde os nomes dos meses e a numeração dos anos, até à figura do rei no baralho de cartas. Sabe-se no que isso deu, como se viu, nos últimos meses, o que deu a absurda proibição do véu islâmico nas escolas oficiais francesas.
Desculpem-me a expressão, mas, “por amor de Deus”, parem com esta loucura ou com este fundamentalismo reverso. A não ser que se queiram imortalizar, como se imortalizou o Gouvarinho de Eça quando acusou os defensores da educação física de quererem substituir a Cruz pelo trapézio. Como se costuma dizer, o ridículo mata. E, só para não invocar o Santo Nome em vão, não termino esta crónica dizendo: “Haja Deus”, expressão corrente na boca de tantos ateus.»
4 comments on “A Cruz e o trapézio”
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Ora seja bem-vindo. Já temos dois amigos virtuais em comum: o Dragão e o Paulo Cunha Porto (que infelizmente desapareceu destas lides).
Por aqui não tem havido tempo para algum postito de jeito mas o Hogarth ainda está na calha e umas historietas de evolucionismo mítico, também.
Abç e muito obrigada
Vim aqui parar por via dos seus comentários na gruta do Dragão.
Tenho aprendido imenso, o que sinceramente lhe agradeço. Mais uma vez, também aqui e pela sua mão, recebo uma pérola de inteligência e coerência na crítica feita por Bénard da Costa ao fundamentalismo laico esterilizante do viral simbolismo religioso. Gostei. Por muito que o queiram não será por acabarem com os sintomas que curam a doença. Graças a Deus.
Virei mais vezes.
Disso não há dúvida
Os nomes religiosos, as cruzes nas escolas, as touradas, agora os circos… estou certo que ainda vou assistir à remoção de todas as estátuas das cidades de nobres cavaleiros da história portuguesa, simplesmente por estarem montados num animal.
E olha, acredita a estátua do Cristo-Rei tem os dias contados porque alguém vai achar traumatizante acordar todos dias e receber um abraço do Dito…
Estou como o Rui ‘esta gente mete para a veia’.
RB