A encarnação e o relevo do visível: o visual
«Quando S. João, no início do seu evangelho, recordava que os homens tinham finalmente podido «contemplar a glória do Verbo» (et vidimus gloriam eius, segundo o texto latina da Vulgata), designava assim o acontecimento absolutamente central – ou a invenção absolutamente central – do cristianismo, que é a encarnação do Verbo divino na pessoa «visível» de Jesus Cristo. Acontecimento «incrível»- constituindo por isso mesmo o rochedo absoluto de toda uma crença. Porque celebrava numa espécie de entrada de Deus como tal, e não como aparência, no mundo visível, o acontecimento da Encarnação devia logicamente constituir também a “ aposta absoluta de toda a figuração”. Aposta absoluta, mas também: paradoxo absoluto de toda a figuração, que S. Bernardino de Siena, no século XV, exprimia dizendo que: «o infigurável (aí aparecia) na figura (…), o incircunscrível no lugar, invisível da visão» etc. Paradoxo, com efeito: qual pode ser o aspecto congruente dum verbo, duma pura palavra que se encarna? Por que é um homem (cur homo): o foi, sabemo-lo, o título de numerosos tratados medievais acerca da Encarnação, em particular o de Santo Anselmo)?
Como conciliar a unidade imutável da pessoa divina com a diversidade e o contraste do que seria preciso nomear a dramática das suas transfigurações, depois o belo jovem, capaz de andar sobre as águas, até ao ser desfigurado e sangrento, humilhado, que pende na cruz…e depois esse homem sacrificado, até ao deus deslumbrante que se eleva acima dos discípulos… e depois ainda esse corpo glorioso, até à pura e simples superfície do pão ázimo consagrado, onde o dogma cristão reconhece portador de toda a «presença real» do próprio Verbo?O que o cristianismo procurava aprofundar, nesta aposta e neste paradoxo da figuração, era ultrapassar a oposição secular dos deuses demasiado visíveis do paganismo greco-latino e do deus demasiado invisível da religião hebraica.
O cristianismo tinha nascido – e fatalmente haveria de permanecer qualquer coisa nele – na dupla cultura que pretendia ultrapassar: na Antiguidade clássica, com o que isso pressupunha de abandono ao prazer das belas figurações, e ao que se poderia nomear uma religião dos corpos; na religião do Livro, com o que ela supunha de aversão no que reporta ao prazer ou à magia das imagens. Esta situação, mais uma vez paradoxal, condiciona em grande parte as contradições aparentes que marcam a emergência e o desenvolvimento do cristianismo: por exemplo o florescimento das grandes teologias da imagem, numa época em que a religião cristã ainda fazia sua a interdição mosaica das imagens; ou o nascimento de uma arte propriamente cristã numa época em que os teólogos (Tertuliano em particular) exprimiam violentamente a sua aversão ao mundo visível…A solução destas contradições históricas só pode ser prevista se dermos conta do trabalho intenso de relevo, d’Aufhebung, de ultrapassagem dialéctica, aplicadas pela doutrina cristã às categorias usuais da figura e da visibilidade. A nossa primeira hipótese será então que o mistério cristão da Encarnação exigiu e produziu um trabalho de relevo do visível, tendo em vista exigir e produzir o seu trabalho extremo de figuração. Que «o invisível seja visto na visão» impunha logicamente que a contradição visível /invisível fosse superada, e isso só era possível pela própria modificação o conteúdo próprio de cada noção.
Mas como é que isso foi levado a cabo? Primeiro exigindo do mundo visível qualquer coisa como uma perda , um dano sacrificial. Um rito de passagem, um baptismo, uma circuncisão do olhar. Qualquer coisa como um contrato feito com o mundo das imagens, mundo a que o teólogo cristão se dirigiria nestes termos: «ou bem que tu não és visível, e então eu abandonar-te-ei como aparência e como ídolo. Ou bem que tu me alcanças o fundo, tu o encarnas, tu próprio à imagem e à semelhança da palavra divina e da sua encarnação que deves glorificar, e então eu reconhecer-te-ei como uma figura da verdade…»
Este relevo do visível, que reconciliaria a um certo nível o abade de Suger em êxtase diante das nuvens coloridas de um cálice de sardónica ou a profusão dourada das figuras cinzeladas no altar de Saint-Denis, e S. Bernardo que apenas desejava o clarão branco das suas paredes para poder contemplar o Verbo- este relevo do visível pode ser nomeado o visual, por consideração particularmente à pregnância extraordinária do próprio vocabulário da visão (próprio e sobretudo quando é chamado interior) em todo o pensamento e imaginário do cristianismo. Dizemos o visual para precisar o que entendemos de mais alto através da fórmula arriscada do inconsciente do visível». Dizemos o visual e opomo-lo ao visível, para exprimir esta hipótese que teve em conta que o mistério da encarnação visava ou tinha por efeito perturbar a ordem do mundo visível e a ordem clássica da imitação. Ela devia perturba-la como um sintoma perturba o corpo, ou como um milagre (diria Agostinho) perturba a ordem normal das coisas. (…)»
Georges Didi-Hubermam, «Puissances de la figure. Exégèse et visualité dans l’art chrétien»,Encyclopaedia Universalis- Symposium, Paris, EU., 1990, pp596-609.
Imagens : Verbum Domini, inicial iluminada do Livro de Osías, bíblia medieval. Bibliotca Guarneriana, ms. 3 folio 12. San Daniele del Friuli.
Cálice da abadia de Saint-Denis