As bolhas da macacada #7
Na passagem que citámos no outro post, do diálogo entre o filósofo e o banqueiro, a dada altura, o primeiro (Roger-Pol Droit) faz alusão ao sentido utópico de todas estas engenharias financeiras dos nossos dias.
«Je ne sais si l’épisode récent de développement de mutation du monde financier que vous avez décrit ressemble plus à la pierre philosophale ou aux utopies. Mais, en tout cas, il s’agit bien d’un processus analogue. L’étonnant, c’est qu’il soit survenu dans le monde financier, et précisément après 1989 et la chute du mur de Berlin. Peut-être ai-je maintenant la possibilité de quelques premières remarques».
É esta convicção de tudo servir para um futuro radioso, baseada na crença do controle científico do modelo, que os torna cegos perante as catástrofes. Como se o mundo não fosse mais que um futuro em potência, num presente que nasce do nada, perfeito e holístico.
Esta mesma ideia do non-sense utópico, prometido pelos alquimistas financeiros, já tinha sido usada aquando da dupla catástrofe das bolhas francesa e inglesa, no ano de 1720, com antecedentes na Holanda.
A deliciosa gravura que se segue, no seu intuito de satirizar a bolha do Mississípi, ilustra-o bem.
Het Groote Tafereel der Dwassheid… (The Great Mirror of Folly)- 1720
No título pode ler-se: “Representation of the very famous island of Mad-head, lying in the sea of shares, discovered by Mr. Law-rens, and inhabited by a collection of all kinds of people, to whom are given the general name shareholders.”
Como consequência da ganância, todos aqueles investidores que ficaram a arder, são encaminhados para a Ilha da loucura. Uma distopia à outrance do mundo perfeito que a especulação descabelada prometia. Como moto em pendant– as trevas- uma coruja diz que é delas que gosta e o gato que só caça de noite.
O que tem mais piada, é o facto do autor anónimo da gravura oitocentista se ter inspirado para a figuração da cabeça do louco com capuz, na própria forma de cabeça lunar da ilha de Thomas More , com a sua capital “que não se vê”- a ctónica Amaurote, por sua vez uma contra utopia irónica, ainda que bem disfarçada.
- Para a tradução em inglês e explicação dos detalhes, ver aqui.
- Imagem: Anubis mago- Heather Tweed
9 comments on “As bolhas da macacada #7”
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ahahahha
Essa é deliciosa.
Cara Zazie,
Estamos de acordo. Para rematar, não resisto a contar-lhe uma anedota (a minha preferida, se ja contei, desculpe-me), que me foi contada por um amigo meu no tempo em que ele andava no Técnico, em fisica se bem me lembro. E’ assim :
Um homem atravessou a Mancha num balão e chega às costas da Normandia mas perdeu-se com o nevoeiro e não sabe bem onde esta.
De repente, avista um individuo a olhar para o mar, em cima de uma falésia. Aproxima-se e diz-lhe : “Olhe ai, o meu amigo por acaso não me sabe dizer onde é que eu estou ?”.
O individuo olha para ele, pensa um bocado, e responde-lhe
– “Bem, você esta num balão.”
– “Mmmh, muito obrigado. Diga-me so mais uma coisa. Você é matematico, não é ?”
– “Sou matematico, de facto, é a minha profissão. Mas como é que você adivinhou ?”
-“Bom, é simples. Eu fiz-lhe uma pergunta. Você reflectiu antes de responder. A sua resposta é rigorosamente exacta, e não me serve absolutamente para nada !”
Delicioso, não é ?
Abraços
De qualquer forma v. levantou aí uma questão pertinente. O facto da crença também poder levar a utopias e essa ubris não ser menos perigosa que a ateia.
Seguindo a ortodoxia católica, tal não deveria nunca acontecer.
Ainda assim, as heresias foram precisamente isso. Deve-se aos milenarismos heréticos as maiores barbaridades em nome dessa utopia da igualdade.
No entanto, foi a ortodoxia de Roma que sempre os travou. E isto é que tende a ser contado às avessas.
Mas, aos aprendizes de feiticeiros ateus ou científicos materialistas e utilitaristas, o que os pode travar?
Até porque, quanto mais eruditas são as questões- menos controle geral existe. Nenhum de nós controla “esquemas financeiros” nem modelos matemáticos para alavancagens magníficas.
Olá,
Pois eu é que devo ter lido mal porque estive aqui com problemas na ligação.
Há-de ser isso. Ainda que esta questão do uso da matemática tenha posições contrárias.
Estive para fazer o post com esse artigo que lhe falei. Uns consideram que os próprios matemáticos aderiram a esta facilidade dos modelos financeiros, pelo facto de se abrir um campo de aplicação enorme. e consideram-nos aprendizes de feiticeiros.
Outros, entre os quais se encontra o Taleb dizem que a culpa foi apenas dos financeiros e que emprestar dinheiro a quem não pode pagar nada tem de matemático.
De qualquer forma, seja matemática, seja o que for, modelos teóricos e probabilísticos não deveriam ser tomados por infalíveis. Mas, a verdade é que enquanto funcionam e dão a render, ninguém pensa nisso.
E há-de ter sido sempre assim, com modelos ou com “esquemas” como dantes lhes chamavam.
Bom dia Zazie,
Devo ter-me expressado mal.
O meu proposito não era criticar a utopia “cristã” em contraposição a outras, nem o exemplo que dei dos Indios do Brasil pode em rigor ser apresentado como um movimento propriamente “cristão” (trata-se mais de uma forma de sincretismo com uma base fortemente tradicional, a razão pela qual me lembrei dele é que vem misturado com um saber “livresco”, por influência dos missionarios, reclamando-se assim de uma autoridade assente no saber).
O que eu questiono, muito simplesmente, é a nossa propensão para nos colocarmos nas mãos do saber cientifico como se ele valesse alguma coisa por si. O reino da tecnologia nasce desse fenomeno, e também a crise dos bancos. Nasce da nossa tendência para cair de forma perfeitamente inconsciente nas miragens de uma pseudo-ciência que nos propõe tudo dado de bandeja, como se isso nos fosse devido e devesse cair milagrosamente dos céus.
Ora bem, o que eu digo apenas, aceitando que o fenomeno resulta da falta de uma educação ética e filosofica minima (“science sans conscience” diz Rabelais), é que se trata também de ma compreensão do que é a ciência. Ou seja, paradoxalmente, de uma tremenda falta de cultura cientifica.
A ciência, a verdadeira ciência, é rigorosa e desenvolve-se numa atenção constante e lucida aos seus limites, que marcam também os seus poderes (limitados por hipotese).
Rabelais era médico. Quando fala de ciência, sabe do que fala. Dai a minha citação.
Quem exerce uma profissão liberal (la esta, Rabelais era médico), sabe por experiência que as pessoas querem utopias, compram-nas a qualquer preço, perdem-se por elas e ainda pedem mais. Isto é psicologicamente compreensivel, porque a racionalização é também, uma forma de defesa contra a hostilidade do real.
Mas o verdadeiro homem de saber, de saber digno e “liberal” (ou seja verdadeiramente valioso), sabe que a sua contribuição consiste essencialmente em combater esta tendência.
O problema não esta em acreditar que possamos ir parar aos céus. Eu até admito que seja possivel (não sou sectario).
O problema, pelo menos o problema que eu quis levantar, esta em quem nos diz : o caminho é por aqui, é facil, é barato e da milhões, venham sem hesitar que isto é matematico e esta nos livros.
Em suma, o verdadeiro problema, são os sorbonagros, sejam eles cristãos ou outra coisa qualquer, ou alias ateus (como eu).
Abraço
Bom dia Zazie,
Devo ter-me expressado mal.
O meu proposito não era criticar a utopia “cristã” em contraposição a outras, nem o exemplo que dei dos Indios do Brasil pode em rigor ser apresentado como um movimento propriamente “cristão” (trata-se mais de uma forma de sincretismo com uma base fortemente tradicional, a razão pela qual me lembrei dele é que vem misturado com um saber “livresco”, por influência dos missionarios, reclamando-se assim de uma autoridade assente no saber).
O que eu questiono, muito simplesmente, é a nossa propensão para nos colocarmos nas mãos do saber cientifico como se ele valesse alguma coisa por si. O reino da tecnologia nasce desse fenomeno, e também a crise dos bancos. Nasce da nossa tendência para cair de forma perfeitamente inconsciente nas miragens de uma pseudo-ciência que nos propõe tudo dado de bandeja, como se isso nos fosse devido e devesse cair milagrosamente dos céus.
Ora bem, o que eu digo apenas, aceitando que o fenomeno resulta da falta de uma educação ética e filosofica minima (“science sans conscience” diz Rabelais), é que se trata também de ma compreensão do que é a ciência. Ou seja, paradoxalmente, de uma tremenda falta de cultura cientifica.
A ciência, a verdadeira ciência, é rigorosa e desenvolve-se numa atenção constante e lucida aos seus limites, que marcam também os seus poderes (limitados por hipotese).
Rabelais era médico. Quando fala de ciência, sabe do que fala. Dai a minha citação.
Quem exerce uma profissão liberal (la esta, Rabelais era médico), sabe por experiência que as pessoas querem utopias, compram-nas a qualquer preço, perdem-se por elas e ainda pedem mais. Isto é psicologicamente compreensivel, porque a racionalização é também, uma forma de defesa contra a hostilidade do real.
Mas o verdadeiro homem de saber, de saber digno e “liberal” (ou seja verdadeiramente valioso), sabe que a sua contribuição consiste essencialmente em combater esta tendência.
O problema não esta em acreditar que possamos ir parar aos céus. Eu até admito que seja possivel (não sou sectario).
O problema, pelo menos o problema que eu quis levantar, esta em quem nos diz : o caminho é por aqui, é facil, é barato e da milhões, venham sem hesitar que isto é matematico e esta nos livros.
Em suma, o verdadeiro problema, são os sorbonagros, sejam eles cristãos ou outra coisa qualquer, ou alias ateus (como eu).
Abraço
Mas atenção- eu sei que v. é dos enxofres e tende sempre a ir para aí.
ehehe
Está enganado- o sentido de utopia cristão nada tem a ver com a ubris da ganância.
O Nietzsche explica isso muito bem. Isto é fruto da morte de Deus- no lugar dele diviniza-se o ser humano.
Ou o dinheiro e é por isso que achei delicioso como as gravuras satíricas setecentistas já invocavam os adoradores de Mammon.
Isto é fruto de não se temer nada. É não haver nada acima das capacidades humanas- estas engenharias continuam a replicar a torre de Babel- e olhe que as gravuras- as mesmas de 1720 também se lembraram do mesmo.
Mas, hoje em dia já ninguém se lembra de evocar nada disto. Até o filósofo do debate julgou estar a fazer uma grande descoberta, ao lembrar-se da utopia e dos alquimistas, quando não é novidade nenhuma- era assim que se pensavam as questões no passado.
O problema foi terem-se esquecido. Entre o século XVIII e os nossos dias houve um hiato nestas memórias, mas as bolhas continuaram e até levaram à guerra Mundial e a outras coisas como o nazismo e fascismo. E já tinham levado, muito provavelmente, à Revolução Francesa.
Então, a minha pergunta, é precisamente esta- porque é que este passado foi esquecido?
E digo-lhe- eu não percebo corno de liberalismo. Mas, à conta do interesse iconográfico e teórico, dei comigo a encontrar no Instituto Mises muita informação que os teóricos que se dizem liberais austríacos nunca contam (ou desconhecem, até).
Essa é outra coisa com piada. Até aqui na blogo, só se faz a história das bolhas financeiras a partir da América, e sempre com a crise de 29 e como se tudo tivesse começado aí.
Porquê?
Porque será que nem estes artigos que eu agora linco eles referem?
Estas mutações ideológicas e a transformação do que é teoria em cartilha ideológica liofilizada também é uma coisa muito engraçada para se questionar.
Não me parece que seja coisa tão complicada.
Este tema dos simulacros financeiros interessa-me e acompanhei a crise, desde início, precisamente por ser um assunto teoricamente pertinente.
O livro veio no seguimento de um debate no Blasfémias e foi o José do Portadaloja que o recomendou. Foi também ele que recomendou outras leituras, incluindo na revista Philosophie de Março, onde vem um artigo muito curioso acerca do que é chamado (N. Taleb- o autor do texto)” a traição dos matemáticos”.
Em poucas palavras trata-se de equacionar a responsabilidade ética dos próprios matemáticos que criaram modelos de teoria do caos que permitem as alavancagens descabeladas e cuja responsabilidade na crise não é pequena.
Claro que são os próprios que agora se dão conta que a finança lida com seres humanos, cujas variantes de comportamento nada têm a ver com aplicações “no vácuo” a outras coisas, como a própria natureza e que não implicam usar a ubris e brincar com o capitalismo.
A resposta do autor é que deviam ser penalizados já que a responsabilidade não é muito diferente da de um físico, ou de um médico- estão em causa milhares de seres humanos- não é matemática teórica para se andar à procura da “chave do universo”.
Neste caso, apeteceu-me foi recuar ao século XVIII, já que nenhum deles se lembrou que no passado foi mesmo assim que outros “magos” foram vistos- como feiticeiros imbuídos de ganância e loucura.
Abç
O livro vale a pena e o tema também-
Filosoficamente está em causa uma moral utilitária/científica e o crédito religioso nas magias científicas ou o inverso- os princípios éticos que valem por si mesmos.
Claro que o banqueiro do debate do livro, acaba por defender o utilitarismo- à semelhança de qualquer ideólogo liberal.
Bom dia Zazie,
“Science sans conscience…”
E no entanto, continuo convencido que o problema esta na compreensão do que é a verdadeira ciência. A frase acima, não por acaso, é de um médico e, simultaneamente, do inventor da deliciosa expressão “sorbonagros”.
Faz a Zazie muito bem em invocar a utopia.
Pela minha parte, lembro-me daqueles movimentos messiânicos dos Indios do Brasil, estudados pela mulher do Clastres, que conseguiam movimentar multidões em direcção ao Oceano Atlântico. Uma vez chegados à praia, punham-se a dançar e a cantar, convencidos que ascenderiam aos céus.
Pois bem, embora com raizes mais fundas (que isto é um pouco complicado), esses movimentos apoiavam-se em parte numa curiosa assimilação das doutrinas cristãs divulgadas pelos missionarios. E muito provavelmente, acreditavam que se tratava de ciência !
Vou procurar no livro de R-P Droit e do tal banqueiro para ver se, por acaso, la esta explicado o que distingue o “saber” do Chamane que tinha a certeza que se ascende aos céus dançando e cantando na praia, e o saber do banqueiro a quem confiamos o nosso dinheiro.
Vou procurar, porque receio que a resposta não venha se eu me contentar com dançar e cantar à frente do livro…
Mas, em boa verdade, não tenho nenhuma certeza de encontrar la a resposta !
Abraço,