tamquam monstra

Regressando aos nossos monstrinhos de estimação, sejam medievais ou contemporâneos, um dos aspectos que maior curiosidade desperta consiste no volt de face rapidamente operado quando com “eles” somos confrontados.
O lendário Guillaume de Rubrouck já havia proferido a famosa frase: tamquam monstra, ao descrever a reacção dos tártaros perante a “monstruosidade facial” dos europeus que para lá foram no intuito dos converter. Se aos olhos do Outro, até nós o podemos ser, porque não transformar o desconhecido em mais um aliado ou, ainda melhor – num fiel súbdito?Teoricamente a questão transforma-se numa nova retórica da pedagogia cristã.
Na Gesta Romanorum, de meados do século XIII, as taras destes prodígios de uma natureza exorbitada, tornam-se sintomas de e expressão de virtudes impensáveis.
Os cinocéfalos, por exemplo, se têm cabeça de cão e ladram em vez de falar, devem ser comparados aos padres que também são obrigados às suas rigorosas penitências. Os panóteos possuem grandes orelhas porque gostam de ouvir a palavra divina. Os monóculos da Índia apresentam um único olho na testa mas este vale por muitos outros – pois é o olho da razão- e assim, sujeitos à tirania da sensatez, o único défice que os aflige é a falta de livre-arbítrio.

Os exemplos seguem-se, percorrendo todas as raças fantásticas catalogadas, incluindo também algumas novidades como era o caso dos seres que tinham uma boquinha tão pequena que só se podiam alimentar por uma palhinha. Os infelizes viviam praticamente do ar, ou melhor, do perfume florífero e, quais flores de estufa, também iam desta para melhor ao menor cheiro nauseabundo que se acercasse dos narizes. Tão estapafúrdia deficiência não impediu que, de imediato, a comparassem à grande virtude da castidade e da parcimónia.Como se não bastasse converter as marcas orgânicas da disformidade em novos indícios morais, chega-se ao ponto de fazer representar as raças fantásticas em respeitosa e cristã reza conjunta.

No final da Idade Média, ao sentimento de piedade, junta-se o proselitismo imperial e a necessidade de encontrar aliados na luta contra a ameaça turca. O renascimento do mítico Prestes João não foi mera efabulação de corte e o certo é que as expedições se fizeram acreditando-se “que se acreditava” na fábula, ou sem que este detalhe interferisse na mistura do pensamento escolástico com o novo pragmatismo político.
Não foi apenas a dita carta a ser reabilitada mas muito provavelmente várias, de acordo com a tradição premonitória milenarista dos escritos que choviam dos céus. Desta vez surgem como antecipação milagrosa de boa-nova e o certo é que por cá também “choveu”uma delas.

Neste caso a missiva de enigmática proveniência “bizantina” foi coligida por comendador do país vizinho e, por vias desconhecidas, acabou por cá vir parar.
Pois a tal carta manuscrita é, nem mais nem menos, enviada pelas raças fantásticas ao rei católico de Espanha como resposta a anterior troca de correspondência entre estes povos.

Apresentam-se então os depoimentos fantásticos, iniciados pela rainha das “gentis amazonas da Ásia” seguindo-se os monóculos, ciápodes e blémios- tudo “gente de humana razão”- como garante o comentário, a oferecerem os seus préstimos ao monarca e a toda a Cristandade!
O texto dos monópodes é particularmente saboroso. Imitando Roubrouk, também eles reconhecem que a visita das naus dos estrangeiros foi obra que lhes pareceu totalmente maravilhosa, como vinda dos céus, em particular pelo facto de conseguirem sustentar-se em dois pés e não apenas num.
Pelo meio, estes habitantes dos confins do Mundo, são descritos nas suas anomalias como seres bem mais puros e proveitosos que os que por cá habitavam. Seja por lhes faltar cabeça mas terem os olhos mais perto do coração ou pelo único que possuem estar mais perto da razão, a verdade é que tudo o que carecia no corpo era compensado pela racionalidade do espírito e a mais pura disponibilidade anímica nas intenções do contacto.
Não sabemos se o monarca aproveitou os serviços ou se foi à custa deles que em Lepanto “outros” mais reactivos acabaram vencidos, mas o certo é que não bastou a experimentalidade das Descobertas para lhes colocarem fim.

Num incrível tratado médico português do século XVIII – Portugal Médico ou Monarchia Medico-Lusitana– da autoria de Luís Brás de Abreu, o autor ainda refere a existência destas raças num capítulo dedicado às diferenças do Homem.
Entre uma série de citações clássicas, aparece uma descrição coeva, sustentada na antiguidade do testemunho desse símbole de tolerância que deu pelo nome de Torquemada: a existência de uma espécie de povos que nascem com duas línguas. Graças à dita particularidade anatómica, estas raças tinham conseguido resolver o grande problema de entendimento do verbo: com uma das línguas faziam as perguntas e com a outra davam a si próprios as respostas.

E assim se conclui que foi preciso esperar pela época das luzes, para que um médico tuga exemplificasse numa raça o que sempre se havia feito com todas- o segredo da relação consiste apenas na invenção de uma prolixa fala autista…

ver: Claude Kappler, monstres, démons et nerveilles à la fin du Moyen Age, Payot, Paris,1980

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