cegueiras de amor
“Pelo fulgor do olhar, (Cupido) provoca naquele que atinge uma espécie de loucura e ensina-lhe os rudimento do amor. Por sua acção, o enamorado fica cativo em contemplação da beleza, enquanto os olhos são feridos.
Por esta razão se diz que Cupido monta uma emboscada com o seu arco, pronto a disparar as setas nos olhos do enamorado deixando-lhe a arder o coração”. E cita Apuleio: “pelos teus olhos entra nos meus olhos e lança um cruel fogo no meu coração.
Este amor, em vez de fazer sonhar o enamorado, é tido como uma doença, o efeito de uma praga infecciosa, – a pior de todas, como ele diz, que só não contagia o próximo porque se vira contra si própria, deixando o apaixonado cativo dos feitiços que Cupido lhe lançou.
Idêntico ao bruxedo, compara o mal ao efeito do reflexo do espelho de Narciso que leva o fascinado a perder a sua real forma e morrer apaixonado por uma beleza imaterial.
Como tratamento para remover o feitiço, aconselha a desviar a cara ao olhar que o pretende ferir e ir à causa da maleita. Para isso necessita de evitar a companhia da sedutora, precaver o organismo de qualquer fraqueza motivada por doença e concentrar o espírito no trabalho.
Aos que já foram contaminados dá indicações mais técnicas, como as sangrias, purgas de fluidos e pestilências que o organismo possa possuir, para que a praga da paixão seja expurgada juntamente com eles.
É muito curiosa esta descrição do cupido amoroso. Segue a teoria dos simulacros, que entram pelos olhos, e impregnam o cérebro de duplos das coisas; coloca o apaixonado no lugar do idólatra cativo, como no mito de Pigmaleão, como já foi referido aqui , mas afasta-se do paralelo que dele derivara para o amor cortês.
Este amor platónico perdeu o poder da sublimação espiritual e está mais próximo do velho mau-olhado medieval.
A imagem que se lhe associa oscila entre a forma do Cupido feminino na inversão da presa que se torna caçadora e do Cupido cego, de conotações mortíferas e demoníacas.
Mas, Giambattista della Porta é um físico alquimista, crente nas possibilidades de controlo do homem sobre a natureza e, por isso, o seu Cupido se é maligno, não o deve a quaisquer motivos morais. Tornou-se um mero efeito físico de doença, explicada racionalmente por processos de doutrina medicinal, da qual nos podemos livrar com uma simples purga dos fluidos do corpo.
O tempo da contemplação poética deu lugar à virtude do controle do corpo; o que se perde em poesia ganha-se em pragmática utilitária.
Veremos como essa sobreposição do humano à fatalidade da sina também se irá desenvolver por dissolução dos limites dessa mesma humanidade.
Imagens: 1-Amor Carnalis, pormenor de gravura alemã, c.1475
2-Giotto, S. Francisco de Assis, alegoria da Castidade (1320-25)Cupido cego (denominado Amor), juntamente com o seu companheiro –nu Ardor- a serem expulsos da Torre da Castidade pela Morte e pela Penitência.
Ver:
Michael CAMILLE, The Gothic Idol, Ideology and Image-Making in Medieval Art, Cambridge New Art History and Criticism. Cambridge & New York: Cambridge University Press, 1989.
Erwin PANOFSKY, Estudos de Iconologia. Temas humanistas na arte do renascimento, Editorial Estampa, Lisboa, 1986.
3 comments on “cegueiras de amor”
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Belo “post”.
Num plano diferente, o misógino Alphonse Karr definia o amor como «a única caçada em que o caçador se entretém a fingir que é a caça». Que me perdoem a Zazie e as Visitas Femininas deste blogue. Mas foi ele que disse, não fui eu…
para ti também
delicioso.Obrigada pela divulgação desta matéria. Bom f.s.Bjs e 🙂