a propósito de uma travessia pedrada
A história deve-se à parceria de Musset com o editor Stahl e tem como principal atractivo o talento de gravador de Antoine Johannot ,cujas imagens podem ser vistas aqui .
Interessa, neste caso a primeira ilustração. Nela Johannot representou um gigantesco demónio rochoso em vias de engolir os caminhantes que se deixavam atrair por sonhos luxuriosos, como o indica a figura feminina reclinada sobre a cabeça do colosso.
A ideia não é nova; desde as mais antigas moralizações visionárias que o escape utópico tendia a ser interrompido pela emergência dos abismos infernais.
Um desses relatos encontra-se nas Viagens de Mandeville, acompanhado de gravura com semelhanças à da ilustração romântica.
O texto de Mandeville consiste numa adulteração de uma travessia descrita por Odorico. No relato incial o vale era uma espécie de “El Dorado”, pleno de dinheiro- tentação paradoxalmente demasiado realista para este tipo de viagens de cariz iniciático. Apesar das afinidades com a visão de Túndalo, Odorico poucos detalhes dava do local, preferindo centrar-se no poder do verbo: “Si y trouvay tant de corps mors gisans que nule pourroit croire. Quand plus vins prés je vis un visage humain trés horrible et très hydeux à un lez de la montaigne en une pierre. Il estoit si horrible que je cuiday bien morir de paour et disoie ces moz: Verbum caro factum est“
Para o espírito exagerado de Mandeville a descrição era parca de fantasia pelo que tratou de a alterar. Acrescentou-lhe uma série de diabos e transformou o local numa entrada do Inferno- aspecto que nunca tinha sido mencionado por Odorico.
“Et en my lieu de celle valée il y a une roche, et sur celle roche il y a une teste dun dyable moul orrible a veoir, et si nem pert toutes persnonnes, quil semble quil doie tantost devourer. Et a les yeux si mouvables et si estincellants […] Et si a une telle contenance que nuls ne lose regarder parfaitement. Elle semble telle fois est pres de lautre loing, et de li ist feu et lumiere et tant de punaise que a painnes ne puet nulz endurer”
A gravura que acompanha a discrição redundou numa caricatura patusca que acompanhou as primeiras edições. Nada tendo de assustador, mantém no entanto os traços de uma figuração demoníaca próxima da que ilustra a Voyage ou il vous Plaira.
Pode ser uma mera coincidência e esse factor é acessório, pois tudo indica que o próprio tema também tenha viajado de outras paragens mais orientais.
A dada altura da descrição do vale do Inferno, Mandeville fala de uma atmosfera espessa, pesada aterradora: “En cês tenebres fusmes nous abatus a terre plus fois et en seurs manieres, que a painnes estiemes redreccies que tantost rabatus” Passagem muito semelhante encontra-se num texto oriental, relacionado com a lenda de Alexandre, onde se descrevem umas montanhas perto de Samarcanda que emanavam os vapores do sal amoniacal.
Os cruzamentos entre estes relatos reais e míticos tendem a repetir-se sempre que o tema da Viagem está em jogo. A obscuridade, os inimigos invisíveis, os vales encantadores que de repente se transformam em pesadelos e, principalmente o próprio efeito ilusório da demanda.
Mandeville dá conta desse factor quando não encontra explicação para determinados acontecimentos que ocorriam no vale: o dinheiro que viam não lhe podiam tocar, os mortos que jaziam no solo da entrada infernal não se corrompiam. Deduziu então que todas estas visões não passavam de truques lançados pelo inimigo para os confundir, fazendo-os cair eles próprios em espasmos deliciosos como se estivessem mortos-“Eet en ces pasmoissons nous veismes especialment moult de merveilles, dont le nose parler”
No caso da Viagem pelo povoado mundo do haxixe, o herói também trespassa pela espada inimigos hediondos mas estes permanecem vivos: “(…) et n’écoutant que ma fureur, je tournai contre lui mon épée, et le traversai de part en part. Mais heureusement il n’en mourait pas… de façon que je le voyais à la fois mort et vivant”. Todas as suas capacidades eram transferidas para os que lhe assaltavam o cérebro e roubavam as ideias, deixando-o exausto: “C’est ainsi que sous le voile de l’amitié, le scélérat vint à bout de s’emparer de ma cervelle, dont il fit son profit, car, à mesure que ma tête diminuait de volume, la sienne grossissait.. . No final o viajante recupera a consciência e constata que tudo não passara de um sonho.
Entre as visões antigas e a romântica existe uma diferença fundamental- Odorico e Mandeville são medievais, para eles não existe um corte radical entre realidade e ficção, porque também não existe real ou imaginário em termos absolutos.
A viagem medieval fala de maravilhas, a romântica pode ser fantástica, mas não passa de um pesadelo.
As maravilhas são ocasiões para se aperceber uma manifestação do sagrado e este é que é o real por excelência; o fantástico apresenta-se apenas como um escape da razão, sob o efeito do atordoamento dos sentidos.
Na viagem medieval o Inferno ainda possuiu efeito de transferência mágica; nos tempos modernos dessacralizados caberá à psicanálise recuperar-lhe o sentido xamânico entretanto perdido.
Bibliografia:
Folklore (vol. 85, 1974), The Folklore Society, London
Kappler, Claude, monstres, démons et merveilles à la fin du Moyen Age, Payot, Paris, 1980
Mandeville, Jean, The buke of J. Mandevill. Ed G F Warner, Roxburg Club, 1890, Westminster, 1889
4 comments on “a propósito de uma travessia pedrada”
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Viva Mário! lá nos vamos encontrando na triciclinho “;O)
beijocas
Será uma versão terra-firme das ilusões das sereias ?
Zazie, penitencio-me por só agora aportar ao teu blogue apesar de já o saber navegante há muitas luas!
ahahha pois posso mas olha que a fé move montanhas “:O)))
a começar pela minha que encontra semelhanças que cá para mim só existem na minha cabecinha…
ehehe acho que mais ninguém se lembrava de encontrar parecenças entre estas duas imagens.
(mas não digas nada…)
“;O)))
Estas suculentas temáticas…
Magnífico.
Só uma petit discordância na conclusão: se estás à espera da psicanálise, é melhor arranjares um divã. E esperares deitada, eh.eh!… :O)