intercâmbios – fantasia e realidade

A história da Ciência teve uma longa tradição de misto de fábula com pesquisador excêntrico ansioso por descobrir os mais bizarros fenómenos na natureza.
Muitas lendas medievais têm derivações pseudo-científicas levando inclusive à adopção de terminologia fantástica já existente como se falou aqui .
O campo da concepção e criação natural, bem como as marcas de seres vivos que se poderiam detectar no reino mineral é um dos mais profícuos a este propósito.
Os ovos, por exemplo, tanto poderiam ser chocados por uma mulher que vivia na lua, fazendo sair deles homens gigantes, como relatou e ilustrou Licostenes (1518-1561), na crónica dos prodígios , publicada em 1557
Mas também poderiam recordar os ovos com faces humanas estampadas inicialmente descritos por Ambroise Paré (1510-90). O ovo em questão que deixou documentado em gravura nitidamente semelhante à lendária Górgona da mitologia, conta o médico que o encontrou no dia 15 de Março de 1569 na casa de um advogado de Baucheron em Autun, na Borgonha para grande susto da que uma criada que deparou com ele quando se preparava para confeccionar uma omeleta.

A descoberta foi prontamente enviada pelo barão de Senecey ao monarca. A história vai passando de mão em mão e encontramo-la no tratado dos monstros de Fortunio Liceti (De Monstris, 1665) Este já descreve como um monstro sem pescoço, com cabeça horrível de olhos sem pálpebras, um nariz de leão, dois cornos de carneiro, nitidamente por o confundir com monstro de Turim que Liceti havia apresentado ao lado do famoso ovo.

Como salientou Roger Caillois, “o fantástico parte da solidez do mundo natural para melhor a derrubar”. As datações precisas, o nome dos personagens e, neste caso, até o monarca e o lugar onde se encontrava na altura- em Metz, como é acentuado por Liceti e até o próprio capítulo em inseriu esta versão monstruosa da Górgona-“exemplo do excesso de semente” afastando-a da companhia dos relatos dos possessos por demónios que também trata.
Esta tónica no excesso de realidade que tende a inserir na probabilidade banal do quotidiano o evento mais inverosímil vai permanecer em estudos científicos bem mais recentes que aparentemente deveriam ser alheios a estas velhas fantasias de raízes medievais.

O caso das “pedras mentirosas” de Beringuer e os testemunhos fósseis dos “micro-homens” de Okamura, ocorridos respectivamente no século XVIII e em pleno século XX por um laureado Nobel.

No século XVIII ainda não se sabia o que eram os fósseis. Uns julgavam tratar-se de ossos de criaturas que tinham morrido na torrente do Génesis, outros que eram pedras, tal como as lendárias que continham sombras que imitavam os seres vivos.
No entanto, o grande problema era a existência desses “ossos” que não possuíam semelhanças com os seres vivos conhecidos. É aí que entra a teoria de Adam Beringer (da faculdade de medicina de Würtzburg) que defende que estas pedras teriam sido moldadas por Deus, de forma a radiarem a sua sabedoria através de imagens.
O problema é que nos meios científicos a rivalidade também tem uma longa tradição. Não foi preciso esperar muito para que as palestras deste excêntrico estudioso acordassem alguns inimigos mais pragmáticos. Roderick e Eckart, respectivamente um mestre de geografia e um conselheiro bibliotecário da mesma universidade, conhecendo a montanha onde Beringer costumava catar os tais fósseis, decidiram pregar-lhe um terrível partida- “plantaram” por lá uma série de pedras com as marcas mais estapafúrdias de bicharocos. Beringer tinha por hábito pedir a garotos da terra que lhe fossem procurar os tais espécimes e não tardou muito para estes o presentearem com as famosas descobertas.
O nosso sábio de tal modo ficou entusiasmado que vá de publicar textos e desenhos das ditas, atestando a veracidade da sua teoria “teo-fóssil”.
O entusiasmo de Beringer era recíproco ao dos rivais a plantar pedras. A próxima leva de descobertas ainda foi mais fantástica que as rãs e pássaros gravados- tratava-se nada mais nada menos que raios solares, estrelas, cometas e caracteres em latim e hebraico que o nosso cientista prontamente mandou traduzir. E com grande resultado pois lá se encontrava a veríssima assinatura de Jeová em língua primordial.
A história teve requintes de malvadez e nonsense, quando os próprios sabotadores se arrependeram do disparate e tentaram convencer Beringer do engano. Foi pior emenda que o soneto pois este tomou como mais um testemunho de inveja e tentativa de descrédito.
O final foi terrível para todos. Quando se deu conta do engano, o nosso crédulo cientista tentou comprar todas as edições do seu trabalho ao mesmo tempo que denunciou publicamente a tramóia. Acabaram por ser expulsos da universidade e os estudos que, com tanta ingenuidade e igual paixão Beringer havia iniciado, nunca mais foram retomados. Em 1767, passados vnte e sete anos após a sua morte, o editor decidiu fazer nova edição dos estudos tornando-se um sucesso humorístico do género.

Sorte madrasta não teve Okamura ainda que a confusão entre fantasia e espírito de pesquisa também não tenha deixado crédito por mãos alheias.
Chonosuke Okamura, paleontologista reputado e especialista em fósseis e vários tipos de invertebrados como algas e espécimes do período Terciário, já tinha uma série de importantes trabalhos publicados até que lhe deu para acreditar numa espectacular descoberta. Através do microscópio “detectou” uma série de fósseis com micro-criaturas de tamanho idêntico ao de uma aspirina.
Variavam entre patinhos, mini-passarinhos, micro-plantas, micro-peixes, um mini-camelo, um micro-gorila, idênticas miniaturas mas em forma de dragões, cãezinhos domésticos de tamanho de bibelot fossilizado e, mais espantoso ainda, espécimes de figuras mínimas de homenzinhos que conseguia ver no microscópio, levando-o logo a convencer-se de ter descoberto uma nova espécie pré-histórica: o Homo sapiens miniorientalis. Os estudos foram acompanhados de centenas de fotografias e descrições, de tal modo curiosas como um fóssil em que diz que se encontram dois homenzinhos nus, virados um para o outro, agitando as mãos harmoniosamente, obviamente numa dança semelhante às dos nossos dias.
E “os nossos dias” a que ele se referia decorriam no ano de 1983, tendo o espantoso cientista ganho o prémio Nobel de 96 na área de biodiversidade. Evidentemente que não o mereceu por estas imaginosas descobertas mas por verdadeiros estudos que na área da biologia igualmente elaborou.A verdade é que a imaginação é dos estímulos mais importantes para tudo. E quando não se acerta num ramo, há sempre hipótese de uns pequenos desvios inofensivos para outros. A Ciência é uma actividade racional, todos o sabemos, mas o dogma da razão pura e desapaixonada é capaz de ser fantasia menos proveitosa que estas visões tão pitorescas.

imagens:
1- mulher a chocar ovos na lua-Lycosthenes
2 e 3 Ambroise Paré, Cabeça de medusa encontrada num ovo e monstro de Turim (tatado dos Monstros e dos Prodígios), 1545
4 e 5- Variação do mesmo ovo por Ulysse Aldrovandi e Liceti
6 e 7- fósseis de Beringer
8- faces dos micro-homens de Okamura (1983?)
9- micro-homem da espécie Homo sapiens miniorientalis segurando um bebé
10- taxonomia de Okamura

bibliografia: Barbara Stafford, Body Criticism. Imaging the Unseen Enleightenmeent Art and Medicine, The Mit Press, Cambridge/Massachussetts, London/England, 1992

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