os cheirinhas

Já vimos que no que toca a raças fantásticas e uma alimentação racional e equilibrada (como diz o outro no metro) a Idade Média foi pródiga. É claro que havia gostos e bolsas para tudo, sempre foi assim, aliás – enquanto uns se empanturravam no mosteiro, a outros dava-lhes para a levitação quietista chegando a pontos de não comerem nem dormirem, como foi o caso dos euquitas que também duraram pouco (como era de prever…) Ao lado deles até os macrobióticos da altura – alimentados a ganso vegetal – que devia saber a mexilhão- ainda passavam por faustosos epicuristas.
Voltando à questão e aos que rondavam o Paraíso Terrestre: se pela boca morre o peixe, pela parcimónia se detectava o casto cristão em potência, ainda que não fosse lá muito viável, como era o caso dos ástomes de boca tão pequenina que só por uma palhinha consguiam beber uns sumos.
Como conta Plínio no Livro VII da História Natural, já Megástenes os havia descrito de corpo todo coberto de pele e praticamente sem boca, pois bastava-lhes o perfume das maçãs ou outro tão doce que pairasse no ar para viverem sadios e alegres de ventre bem perfumado. Quando tinham de partir em viagem levavam sempre um saquinho de raízes e flores perfumadas para não lhes faltar alimento pelas narinas.
De tão frágeis que eram, despertavam tal comisseração nos viajantes ocientais que deles se abeiravam que até os tentavam alimentar por palhinhas, como conta Mandeville no livro das Maravilhas.
É claro que toda esta sensibilidade fazia deles umas autênticas flores de estufa- um ligeiro cheiro mais nauseabundo e lá se iam os ástomes desta para melhor à espera de um paraíso de Chanel, possivelmente.
Um défice da natureza era sempre lido como um prodígio secreto, neste fascínio pelas lendas de um Oriente tão temido quanto apelativo. Recorda-nos a representação egípcia do jovem deus Harpocrates- com os dedos junto ao pequeno orifício bocal fazia shiuuuuu, remetendo ao silêncio todos os segredos que devem ficar bem guardados.

Rabelais não esqueceu este exemplo quando Pantagruel se encontra com Gaster, o primeiro grande mestre de todas as artes. Com ele residia a velha e pacífica Penia-a deusa da pobreza, mãe das noventa e nove musas por quem Porus, o deus da abundância, nutria devoto amor.
A Gaster faltavam as orelhas e, assim sendo, como constata Pantagruel, reinava impiedoso e inflexível, sem que alguém tenha tenha conseguido persuadi-lo de alguma coisa.

Frágil como os que se alimentam de perfume, mas sem se sujeitar a influências, o segredo do gosto também será sempre este- castidade nas capelinhas, poucas falas e orelhas moucas à plateia…

imagens:
detalhe do mapa-mundo de Ebstorf (original datado de 1239) representação das raças fantásticas incluindo os ástomes
– ástome a ser alimentado- Livro das Maravilhas de Mandeville (in Albert Schram, Der Bilderschmuck der Fruhdrucke, Leipzig, 1921, vol. iV,(de acordo com gravuras da 2ªedição de Anton Sorg, Augsburg, 1481)
– Harpocrates, filho de Serapis e Isis, Begram, Kapisa, Afganistão, Museu de Cabul

ver: Claude KAPPLER, Monstres, Démons et Merveilles à la fin du Moyen Age, Payot, Paris, 1980

5 comments on “os cheirinhas”

  1. KIM PRISU says:

    Gostei de ler. Boa noite

  2. Cara Zazie. São diálogos extraterrestres como esse que tornam a vida na Terra mais divertida. E olha que não coloco a BN na lista dos lugares mais hilariantes do planeta 🙂

  3. zazie says:

    ahahahaha quem é que dizia isso que já não me lembro “:O))))

    houve uns bons anos em que a coisa foi tão intensa que era só isto- nem noticiários nem mais nada- eu e uma colegas e tinhamos a noção que para quem nos ouvia a trocar ideias acerca destas tretas deviamos parecer completamente exra-terrestres.
    Uma vez foi no bar da BN uma em voz alta: “zaz: tenho aqui um casal de selvagens para ti!” e eu respondo-lhe: “olha, eu encontrei uns com cornichos para ti mas não me parece que tenham lenços na cabeça”. E responde ela: “isso é que é pena- o que eu preciso é com lenços esvoaçantes”

    e precisava e encontrou-os e até foi uma boa de uma “descoberta” para umas coisas de cartografia…
    aahhahahaha

  4. Ahab says:

    O que eu mais gosto nestes posts da zazie é que ela nos mostra um mundo escondido que também é o nosso e onde encontramos algumas raizs nossa.

    O que eu sinto quando leio estes posts é muito parecido com o que sinto quando leio os posts da Rua da Judiaria acerca dos judeus portugueses.

    Curiosamente, ambas as coisas (estas “elucubrações” medievais e os judeus portugueses) foram extintas mais ou menos por esta altura. De facto, os sonhos da Razão produzem monstros… e não os sonhos da fantasia. Esses, coitados, nunca fizeram mal a ninguém.

    PS. Eu falo contra a razão mas sou engenheiro e trabalho em informática!!!! Por outras palavras não sou vejo virtudes na razão como ganho a vida à conta dela!

    PPS. Li tambem alguns comentários lá em baixo do Ma-schamba… E não podia concordar mais com a zazie! Boa!

  5. Lutz says:

    Como dizia recentemente a outra: O que tu sabes!

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