mel pelos beiços
O “avacalhamento” não é exclusivo das que estão em parada lisboeta, tal como a “cabrice” não é dos capríneos. Já S. Boaventura desconfiava da tendência viciosa na espécie dos ursos e não devia estar enganado.
A ursa colmeeira era a figura escolhida, sempre que se queria referir o gosto de quem saboreou luxúria ou dos que ficaram a chupar os dedos.
Ursos e ursas que aparecem em gravuras ou na marginalia decorativa medieval podem estar no lugar desses defeitos e reviravoltas dos prazeres. A Gula fácil e predadora do urso que vai à colmeia e é atacado por tantas abelhas, que não lhe chegam os dedos para o doce, como contava Leonardo da Vinci no Bestiário e que o faz encarnar a vanidade da ira.
Noutros casos é recordado nas trovas satíricas como exemplo do prazer perdido, quando o desejo é muito, mas a mão não lhe chega.
Na versão mais moralista, de que fala Sebastian Brant na Nave dos Loucos, dirige-se a «Quem no tempo alegre do verão descuida o trabalho, acabará no inverno como os ursos a chupar os seus próprios dedos”
Pode também ser má sorte daqueles que não deviam cobiçar o que não lhes foi destinado, como o clérigo enamorado da Farsa dos Físicos de Gil Vicente.
Moço para o clérigo –
«O mestre cousa he sabida,
se vos lembra o entendedor,
Que amar quem vos não quer
he falta d’amor perdido
«Triste ma hora naci
que vio ora elle em mi
O Padre lambe ll’o dedo
Que s’alvoroçou assi?»
Passado um século, ainda Frei António das Chagas recordava “o mel e o cortiço”, num misto de vanglória varonil e desconfiança por tanta facilidade que pode ser “sol de pouca dura”
(…)Se para o vosso cortiço
quereis enxame, eu o tenho,
com tão boa abelha mestra
que não sofre zângãos dentro:
E se a crestar essa colmeia
quereis vir, não tenhais medo
deste furão que é mais doce
que o próprio mel desse termo:
Porém, amiga, ide embora,
que eu de tal favor receio
que quem favo hoje me manda
que à fava me mande cedo.
Nem todo o que sabe bem é prazer negado. A colmeeira também podia ser a ursa bem satisfeita que depois de saboreado o cortiço, ainda lambe os dedos com vontade de mais.
Como a Constança das picardias satíricas de Ruy Moniz:
(…)a que o gosta,
não lhe pesa nada
de ser cavalgada
de ilharga ou de costas.
Passara dos doze,
o mais não é cedo,
se amor vos escoze
perde-lhe o medo.
Guardar de esperança
muito prolongada,
e seja lembrada
por nome Constança.
Que lambeu o dedo
depois de gostar,
e foi-se finar,
do que vos hei medo.
Certo é que não há gozo mais apetecido que o proibido. Muitas colmeeiras “entregavam-se” a estas doçuras em pleno coro das igrejas. A nossa ursa ainda hoje anda nesses desvarios lá pelas bandas da sé do Funchal
ver:
Sebastian Brant, Stultifera Navis (Basileia, 1497)
Frei António das CHAGAS, 1631-1682, Portugal , in Poesia Portuguesa Erótica e Satírica
Selecção, prefácio e notas de Natália Correia, Antígona/frenesi, Lisboa, 1999
Rui MONIZ, séc.XV, in Cancioneiro Geral e “Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, ibidem.
Gil VICENTE, “Farsa dos Físicos”, Obras completas de Gil Vicente, Lisboa, Sá da Costa, tomo VI, 1955, pp.102-103.
Leonardo da VINCI, Bestiário, fábulas e outros escritos, [H, 6r], Lisboa, Assírio e Alvim, 1995, p. 16.
Imagens: -“Bíblia do Urso”, ANTT (assim denominada em virtude da marca de Impressor da Matias Apianus) ed. Basileia, 1569.
-“Imprevidência”- Nave dos Loucos– gravura atribuída a Albrecht Dürer
-cadeiral da igreja da Natividade de Maria, kempen, séc. XV
-cadeiral da Sé do Funchal, c.1517.
2 comments on “mel pelos beiços”
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beijocas
“;O)
A ursa colmeeira é a figura escolhida depois de ler este post.
E o atraso no comentário poderia dever-se a ter ficado a chupar os dedos até agora…
Vou ver mais cadeirais…