O meu desejo é que vós e todos os cristãos sejam mouros
Neste caso, uma série de correspondência imaginária que Fernando o Católico teria travado com todos os povos do mundo, a fim de se unirem em torno da Cristandade.
Para dar um cunho mais maravilhoso a estas epístolas trocadas no ano de 1499, o compilador- um tal Frei Tarfan de Los Godos- da Ordem de S. Jerónimo de Jerusalém (comendador de Frexenal, Tossina, Peñalver Salamanca e Alcolea)-, apresenta-as em plena mundividência – traduzidas da língua scitica, arábica, grega e latina.
Como já tínhamos referido aqui , não houve povo ou soberano do planeta que não tenha recebido carta espanhola e respondido, oferecendo os seus préstimos. Desde as amazonas, aos ciápodes, monóculos, canibais e outros monarcas mais viáveis, como foi o caso dos antárticos, que só não vieram até cá por dificuldades de transporte (ainda que D. Fernando os tenha assediado com os benefícios do excelente clima peninsular), todos responderam ao apelo.
Todos, incluindo o Papa, o Imperador e o próprio turco otomano- Solimão o Magnífico.
Depois do monarca espanhol lhe ter afirmado que o seu poderio já tinha chegado a terras de África, Guiné, Canárias, Índias longínquas, dando lei e vida livre a gentes de todo o mundo, incluindo Monóculos, Acéfalos, Monópodos e Canibais em maior número, assegura-lhe:
O turco não se deixa intimidar pela bravata espanhola e responde-lhe:
“No es de grandes reyes, christiani rey, espresar mucho los derechos de las cosas y leys tan diferentes. Mi deseo es que uso y todos los cristianos seays moros, porque os salueis, que procurar esto a toda a costa y peligro por sola caridad: y quere Dios que los que desta creencia se desuiarem con mano rebusta yo los allegue a su saluacion: paresceme que en tan pia obra podia perecer cualquier uso adquirido por uestros antecesores: el trato de las gentes de mis huestes no es dulce en el cantar y balar, ni en las delicaduras de la uida”
E continua a fazer a apresentação do que os pode esperar, terminando com a certeza de saber quem havia de triunfar- “asi que ño ay que corregir en la forma de nuestro sacrificio, pues uemos que aquella es a Dios deleytable, y por ella nos embia tanta prosperidad :que la general Vitoria por Dios se da a los de su gloria”.
Sabemos como acabou a história. Nesses tempos, apesar de tantos prodígios, as chuvas de cartas não eram sinónimo de crença no benefício da mera diplomacia.
[Manuscrito com iniciais iluminadas, guardado no Arquivo de Évora, transcrito e publicado no ano 1842, pela Typograhia da Revista, na cidade do Porto].
imagens: 1- demónio, miniatura do Codex Piga, séc. XIII, Boémia, 2- fol. 9vº. do manuscrito original.