Corvos com barbas

Os míticos corvos que acompanharam a transladação das relíquias de S. Vicente até à cidade de Lisboa, acabada de tomar aos mouros, tiveram uma rica vida.
Tal foi o carinho com que foram apaparicados por todos os alfacinhas (dizem que as velhas até lhes levavam comida para dentro da igreja) que, perto de quatrocentos anos depois, ainda por lá andavam.
Andavam e não só, esvoaçavam por todo o lado, faziam cocó na capela mor, debicavam os ornamentos, estragavam as tapeçarias, e nem a arca com as relíquias sagradas lhes impunha respeito.
Até ao dia em que as queixas do tesoureiro conseguiram obrigar o cabido a reunir-se, a fim de deliberar o modo de os fazerem desaparecer.
É claro que perante tamanhas preciosidades voadoras, todas as precauções eram poucas. O cabido decidiu reunir-se em segredo, na capela de S. Bartolomeu, logo à entrada da Sé.
Esqueceram-se que a velhice das alimárias não lhes retirara o instinto: quando o porteiro ia a fechar a porta, um dos corvos infiltra-se por uma fresta, vai direito à mesa do cabido e desata em tamanhos brados que a reunião acabou logo ali. Quando o segundo corvo apareceu, já a mesa estava deserta e a história encerrada, não fosse o diabo tecê-las.
E fizeram bem. Só foi pena que nem tesoureiro nem o moço das limpezas tenham acrescentado uma linha a este maravilhoso relato do ano de 1563.

Cfr. António Coelho Gasco (1666), Primeira parte das antiguidades da muy nobre cidade de Lisboa, imporio do mundo, e princeza do mar occeano, Imprensa da Universidade,Coimbra,1924.

2 comments on “Corvos com barbas”

  1. zazie says:

    Pois é. Só de imaginar o cabido reunido às escondidas…
    mas conta mais histórias. Diz que até gastavam um deinheirão em comida para os bichos mas um deles (devia ser o que dava pelo nome de Vicente) preferia ir almoçar à Ribeira. E ia e vinha a pé, todo catita
    ehehehe

  2. Antónimo says:

    Esta história é muito boa! Os vicentinos corvídeos a fazerem parte do cabido e tão negros como a corte filipina recém-devolvida ao remetente. Seriam os pombos e a cidade a resolverem os problemas do tesoureiro. Já os do moço das limpezas me parece que terá sido ele obrigado a dar conta do recado sozinho.

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