“«Bem-aventurados os que se compadecem, porque alcançarão misericórdia.»
-Mateus, 5, 7
Em rigor, somos todos condenados à morte. Desde o dia em que nascemos. Desde o instante em que fomos concebidos.
Há um poder que de facto não temos nem nos pertence: dar ou tirar a vida. Mesmo quando o exercemos por usurpação, tudo não passa de fátua ilusão de fantoche, vã fantasia de bonifrate. A Vida, do pouco que sabemos dela, já cá estava antes de nós e continuará depois de termos acabado, quer enquanto indivíduos, quer enquanto espécie. No misterioso processo, somos meros passageiros, estafetas, peregrinos. E usurários. Vivemos a crédito, morremos a prazo. A nossa vida é simultaneamente a nossa morte. O tempo que demoramos a viver é exactamente igual ao tempo que demoramos a morrer. A biografia equivale ao obituário. O berço é já o prelúdio da sepultura. Que durante o percurso nos esmeremos em infernizar a existência uns aos outros, isso já é outra conversa e apenas atesta duma certa tendência rilhafolesca que, entretanto, de predominante, se vem pomovendo a obsessiva. Mas executados, mais dia menos dia, seremos todos: santos e pecadores, psicopatas e boa gente, pobretanas e banqueiros, humildes e pomposos, génios e mentecaptos, tiranos ferozes e democratas mansos, todos. Sem excepção. Por decreto superior, eterno e inexorável. Imune a subornos, bajulações, compras e súplicas. É todo um cadafalso em forma de esfera a boiar no espaço. Nem os Deuses escapam.
Não faz pois qualquer sentido falar em “pena de morte” como se fosse invenção nossa. Quando, na mais arrotante e bufa das hipóteses, não passamos de carrascos de pechisbeque, verdugos de pacotilha, torcionariozinhos de fancaria. Todavia, com que pompa e circunstância as marionetes macaqueiam as parcas ou os guinchantes títeres se travestem de eríneas!… Com que folclore histriónico os piratas e flibusteiros brincam aos juízos capitais!…
Os condenados gostam de armar ao magistrado. Encarcerados para a vida, sem direito a perdão nem condicional, fatalmente prometidos ao patíbulo, entretêm-se a martirizar-se uns aos outros. De todas as maneiras e feitios. Qual ensaio geral para o inferno. Desencantados com deuses surdos e ausentes, sabujam agora a própria Morte. Para desforra do Deus-que-já-não-está-no-Céu, devotam-se à Negra Ceifeira-que-está-na-Terra. Sacrificam-lhe de empreitada. Erguem-lhe indústrias. Preparam-lhe banquetes. Esforçam-se por agradar-lhe com hecatombes. Estendem-lhe babetes e aperitivos. Mimam-na.
Acreditam talvez que matar rejuvenesce, que faz bem à pele, que hidrata os tecidos e revigora as células. Que estando do lado da Morte, talvez ela os agracie, os gratifique como a qualquer lacaio devoto ou acólito sebento… lhes conceda, vá lá, um adiamentozito, uma suavização no suplício final, quiçá, melhor dos mundos, uma anestesia geral, moral. Sobretudo, moral. Com toda a força. Aliás, é já nisso que se adestram, a fundo, a criar músculo, calo, crosta, concha, chifre: na insensibilidade à sua própria morte através da insensibilidade à morte dos outros. Perfeita ataraxia reptiliana. Gelatinosa. E lá porfiam por antecipar a dos outros, tentando assim ganhar tempo para a sua.
Não é grande custo – e ainda menos grande proeza ou mérito – matar alguém. Enfim, abreviar-lhe ou apressar-lhe a sentença. Recordo, para ilustração disso mesmo, uma daquelas lendas acerca de Diógenes, que nem a Morte, nem os esbirros dela conseguiram ainda apagar. Consta que Perdicas, general de Alexandre, armado da pesporrência e arbitrariedade dos tiranetes, terá um dia convocado o filósofo à sua presença, nos seguintes e algo rudes termos: “ou compareces imediatamente, ou mato-te”. Diógenes retorquiu com o despreendimento, o desprezo e o humor característicos e devidos: “Não vejo nada de extraordinário nisso; um escorpião ou uma tarântula podiam fazer o mesmo.”
E, de facto, não é a matar que um homem se distingue de qualquer insecto venenoso e rastejante. Tal qual como se define não só diante da sua morte, que é a sua vida, como perante a morte do seu semelhante. Sendo cristão, se crê em Cristo, compadece-se; sendo apenas um homem, guarda o silêncio devido à tragédia. Regozijar-se com cadáveres alheios não é digno nem dum cristão, nem dum homem: é digno de uma hiena. Dum chacal. Ou de qualquer necrófago avulso. Uma criatura destas nem digna sequer é da pena de morte que sobre si impende. É, tão sòmente, digna de pena.
Triste de quem não percebe que o Livro da Vida é escrito com a pena da Morte.”