Bem-vindos ao século XIX
O “não” de domingo não representa o Portugal antigo: é apenas a outra metade de um país fundamentalmente plural
(…)Os entusiastas do “sim”, entretidos a celebrar o que alguns julgam ser a vitória póstuma de Afonso Costa, nem repararam que se o “sim” teve um milhão de votos a mais do que em 1998, o “não” também recolheu mais 200.000. E que conceito de “modernidade” e “progresso” autoriza a fazer dos concelhos mais rurais, envelhecidos e analfabetos do Sul – aqueles em que o “sim” teve os melhores resultados -, a vanguarda do “progresso” e da “modernidade”? Para perceber esta estranha mentalidade, teremos de recuar ao século XIX. As esquerdas em Portugal acreditaram sempre que a “modernidade” consistiria numa simples versão laicista da homogeneidade católica do Antigo Regime: onde antes todos eram “católicos”, todos um dia seriam “homens de esquerda” (inclusive as mulheres…). Foi o que aprenderam com Auguste Comte. O “progresso” iria consistir no triunfo total do secularismo socialista, tal como a história antiga teria consistido na expansão da igreja cristã. As direitas seriam uma espécie de índios americanos, condenadas a desaparecer perante as caravanas e comboios da esquerda. Foi assim que Afonso Costa, em 1910, se convenceu de que podia acabar com o catolicismo em “duas gerações”. O que aconteceu a seguir é conhecido. Mas, pelos vistos, houve quem não tivesse aprendido nada. As esquerdas portuguesas dão-nos as boas-vindas ao século XXI com as ideias do século XIX.
Se algo define a “modernidade”, não é o triunfo exclusivo desta ou daquela ideologia ou modo de vida, mas a institucionalização do pluralismo. O “não” de domingo não representa o Portugal antigo: é apenas a outra metade de um país fundamentalmente plural. Já houve quem, a propósito, lembrasse o mapa eleitoral de 1975. Mas há projecções geográficas mais antigas da diversidade política dos portugueses. A primeira que conheço é a do mapa do apoio das câmaras municipais ao Governo liberal de 1822: lá está, já muito nítida, a separação entre o Sul e o Norte. Assim como as esquerdas não têm o monopólio do Portugal “moderno e progressivo”, também as direitas não possuem o exclusivo do Portugal “antigo e tradicional”: a base sociocultural que sustenta as esquerdas políticas é tão antiga como a que sustenta as direitas. Ninguém, neste país, tem o privilégio do progresso e da democracia, ou das cidades e dos jovens. Por exemplo, nos distritos em que o “sim” ganhou, foi nos concelhos das capitais de distrito que o “não” obteve resultados acima da média: no Sul, o “não” é urbano. Isto quer dizer apenas que as cidades são, em cada área cultural, mais heterogéneas do que o campo envolvente.
Em Identificação de Um País (1986), José Mattoso explicou como esta pluralidade estava inscrita no código genético de Portugal. Pouca gente, pelos vistos, percebeu a lição. O que a modernidade fez em Portugal foi dar dimensão política a velhas fronteiras culturais. É significativo que, tendo a sociedade portuguesa mudado tanto nos últimos quarenta anos, essas fronteiras tenham permanecido, independentemente das velhas civilizações rurais com que andaram associadas. Aqueles que aspiraram a governar Portugal longamente e mais ou menos em sossego souberam sempre que, além do país que estava com eles, havia outro país que precisavam de ter em conta. Até os republicanos, no fim, procuraram corrigir o seu terrorismo laicista, com António José de Almeida a impor o barrete cardinalício ao núncio papal. E Salazar, ao contrário do general Franco, nunca restaurou a monarquia e o catolicismo como religião de Estado.
Este país e o seu futuro não pertencem ao “sim”, nem ao “não”. Não entrámos na modernidade no domingo passado. Estamos nela há duzentos anos. O tempo suficiente para percebermos que nunca teremos todos as mesmas opiniões. Tirem portanto as pêras postiças à Afonso Costa, e portem-se como gente grande.
Historiador
[no Público de hoje]
6 comments on “Bem-vindos ao século XIX”
Comments are closed.
ehehehe! pois foi… ainda estou cá desconfiado que a velhota me levou à certa.oh céus… fui parasitado por uma adeptasecreta do não.
ahahaha não posso crer! Pois eu é raro reagir por reactiva mas, desta vez, as patranhas do governo e as picadelas a chamarem-me hipócrita por me abster ou portuguesa de segunda e anti-democrática por pensar de modo diferente, levaram-me mesmo ao Não. Sabes como é, fica-nos no sangue esta mania de não gostarmos de estar do lado dos vencedores nem alinhar com maiorias bem-comportadinhas.
……..
Ainda bem que a tua mamã está fina. Se os astros falam verdade (eheh, não me esqueci) era bem provável que ela te dissesse que sim e depois fizesse lá a cruzinha onde bem queria.
A minha mãe, que já vai nos 90, disse ao telefone fez logo uma daquelas brilhantes análises políticas em que eu sou cópia de segunda. O exemplo do dentista até veio dela. Mas, como é pragmática, é bem capaz de ter votado Sim.
Beijocas. Com essa dos goliardos é que me tentas
“;O)
de resto tenho um crime a confessar para o pessoal do não ir já queixar-se à comissão nacional de eleições.
levei a minha Mãe de 84 anos a votar e fui o caminho todo a segredar-lhe ao ouvido enquanto a amparava: “sim… siiiim… siiiim”
é curioso que a minha irmã, que é ginecologista e obstetra votou “não”, exactamente pelas tuas razões.
Pegámo-nos claro. (lol!)
dissecar o rui ramos, só em cima de uma tábua e com instrumentos esterilizados, quando vieres um dia destes tomar um copo lá aos Goliardos.
Olá rapaz, como vão esses ossos?
Devo dizer-te que também costumo estar de pé atrás com o Rui Ramos, à conta de outras coisas.
Neste caso, também pensei precisamente isso. Se lhe pedissem para fazer apenas uma leitura dos resultados e, se esses resultados fossem o oposto, o que é que diria.
Só que ele não fez isso. Ele mostrou a leitura política que se retirou dos resultados. E essa leitura política- com a própria frase: chegámos ao século XXI, tem dono. E tem, de facto, muito mais de causa que de pragmatismo. A causa do jacobinismo que encontras chapada no Vital Moreira (só para dar um nome) E, essa foto tirou-a ele, muito bem.
Só por isso, por reactiva de também me andarem a colocar em lugares de vergonha (o v.s é que não nos dão a liberdade) e por conhecer a verdadeira vergonha que é o SNS, até votei NÃO. E olha que não tinha votado da outra vez e mesmo desta, até bem perto do dia, também não o contava fazer.
Beijocas
(reconheço-te sempre a perspicácia mesmo quando estamos bem afastados em matéria de ideias)
Este Ramos tem-me habituado a uma capacidade de efabulação tão grande tão grande tão grande que desespero por saber o que escrevinharia ele em caso de vitória e festejos do não, fosse o referendo vinculativo ou não.
(para falar verdade, o não festejou na mesma, só faltou o ter ganho. Haja alegria e muita modernidade).
beijinhos