veritatis splendor

Isto hoje é só citações, mas há textos que vale a pena ficarem por aqui guardados

Gastar o latim
14.07.2007, Pedro Mexia

O cristianismo nasceu com o Império Romano. Em quatro séculos e meio, passou de “superstição perniciosa” a religião oficial. Os conceitos cristãos essenciais não existiam em latim, mas a língua deu novos significados a algumas palavras e adaptou termos gregos. O primeiro autor cristão importante a escrever em latim foi Tertuliano. A primeira tradução integral da bíblia em latim foi feita por São Jerónimo. Santo Agostinho escreveu em latim os geniais A Cidade de Deus e Confissões e o mesmo aconteceu com a enciclopédica Summa de São Tomás. Ao longo dos séculos, o latim foi a língua teológica e litúrgica do catolicismo e ainda hoje é o idioma oficial em documentos da Igreja.
Com o Concílio Vaticano II e o documento Sacrosanctum Concilium (1963), a eucaristia passou a ser celebrada nas línguas vernáculas e foi adaptado o chamado Missal Romano (alterado em 1970). Mas há dias o Papa Bento XVI publicou a carta apostólica Summorum Pontificum, que liberaliza a celebração do rito tridentino (o antigo ritual da missa católica). A celebração em latim nunca foi exactamente proibida, mas tornou-se residual, adoptada quase exclusivamente pelos sectores tradicionalistas. Por isso mesmo, o Papa tem o cuidado de explicar que não recusa a doutrina do Concílio mas que apenas pretende contrariar a “deformação arbitrária da liturgia” e religar a eucaristia ao legado cultural e estético de rito tridentino.
Ratzinger há muito que defende que a crise da Igreja “se deve em grande medida à desintegração da liturgia”. O ritual católico, no seu esplendor romano, é um espectáculo memorável. E a dimensão coreográfica sempre foi decisiva num ritual, que implica uma comunhão organizada e solene. A missa comum, pelo contrário, tornou-se num serviço entediante e feio. Assim que se falou desta mudança, a Associação da Liturgia em Latim, sedeada em Filadélfia, saudou a decisão através do chamado Manifesto Socci: “Manifestamos o nosso regozijo com a decisão do Papa Bento XVI de cancelar a proibição da antiga Missa em Latim de acordo com o Missal de São Pio V, um grande legado da nossa cultura, que deve ser preservado e redescoberto.” A declaração vem no seguimento de outro grande manifesto de intelectuais cristãos e laicos que em 1966 e 1971 protestaram contra o que viam como um ataque à liturgia. A liturgia, tal como as catedrais, diziam, faz parte da civilização cristã e inspirou muita arte ocidental, e não podia ser abandonada sem mais.
O Papa acha exactamente o mesmo: “(…) a liturgia, como aliás a revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade (veritatis splendor). (…) a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação” (Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, 2007). O “sentido do sagrado”, escreve Ratzinger, passa pela arte da celebração: “Igualmente importante para uma correcta arte da celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos. Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas.”
Este assunto não é “arcaico” ou “reaccionário”. Há quatro décadas, assinaram o manifesto pelo latim intelectuais como Jorge Luís Borges, Giorgio De Chirico, W. H. Auden, Robert Bresson, Carl Dreyer, Julien Green, Jacques Maritain, Eugenio Montale, Cristina Campo, François Mauriac, Salvatore Quasimodo, Evelyn Waugh, Maria Zambrano, Gabriel Marcel, Salvador De Madariaga, Mario Luzi ou Graham Greene.
O sentido do sagrado e o sentido da beleza não são nunca língua morta.

Para o José Tolentino Mendonça”

Público de hoje

20 comments on “veritatis splendor”

  1. zazie says:

    Viva,

    Melhor do que eu, vale o texto do Mexia, por isso é que o “postei” na íntegra.

    Da origem do Cristianismo não falei. Creio que começou com Cristo
    “;O)

    Abç

  2. Cara Zaaie…se é que ainda vai ler isto… esta conversa é mais uma entre outras tantas taõ interessantes!
    Não concordo nada com o princípio que que fala da origem do Cristianismo, no entanto…
    Mas o que eu tive que ouvir e aturar quando já há uns meses, defendi a liberdade da volta da missa em latim!…

    Mas isso é o costume…
    Cumprimentos

  3. zazie says:

    Tive a sorte de ainda ter umas aulas de grego com a Buescu e essa é que era espantosa. Traduzia grego antigo como quem traduz inglês.

    Agora do que eu tenho uma pequenina pena é de não ter fazer parte desse mundo de Gauss. A inteligência é algo tão belo quanto uma catedral gótica

    “;O))

  4. Como dizia o Gauss, pauca sed matura

  5. zazie says:

    Francis,
    o que é mais chato é que mesmo dois anos de latim (como eu tive) não servem para muito. Não se aprende assim facilmente línguas mortas e esquece-se ainda mais depressa se não se trabalha com elas.

    Por acaso gostava muito mais de grego do que latim. O pouco que fica serve para se perceber a etimologia das palavras, por exemplo. Agora traduzir duas ou três frases em latim é raro ser capaz.

  6. Sempre tive pena de não aprender latim no liceu. Não fazia parte do currículo de Ciências.

  7. zazie says:

    Mas esta ideia do latim deu-me uma grande alegria. Nem sei bem explicar, mas era um desejo e gosto muito antigo. E a recuperação da liturgia ainda mais.

    Deve ter sido um pouco por isso, que dei comigo a ir assistir a missa de Natal numa igreja ortodoxa de Londres.

    ahahah

  8. zazie says:

    Há-de andar por aí, pelo que tu referiste. Principalmente a última questão: a resposta ao desgaste que a modernidade fez ao “corpo da igreja”.

    Claro que há um projecto que me parece a dar para o megalómano, mas antes essa directiva que o oposto, que a popularização por imitação reformista.

    Essa ideia da Igreja Laica, pelo que percebi, é uma noção de autonomia, em que não é o Estado que a vai buscar, é ela que existe, de forma livre e até pode interferir com ele- por via da liberdade da tradição, contra a uniformização estatal.

    Neste sentido sim, sou a favor.

    Percebo o que tu dizes em relação ao individualismo- mas é aí que reside a grande mais-valia moral do cristianismo. Para igrejas do dólar e do triunfo do mais forte já foi feita a Reforma.

    De qualquer forma, tenho a noção que é uma resistência à tendência oposta- a do desaparecimento. Para aí é que caminha tudo. Este Papa resiste, de certo modo, a minha empatia com a Igreja é também uma resistência. Contra a mesma perda trituradora. De tudo, a começar pelas identidades e pela simples noção de que não há-de ser obrigatória a massifciação de todas as coisas.

    Só há um aspecto diferente. Posso ter um gosto pela Igreja Católica e pelos cultos, assim como pela enorme importância que ela tem na história de um povo. Mas proselitismo é que desconheço. Ou seja, nunca me preocupei com o nº de pessoas que vão à igreja ou que têm fé. E muito menos pensei que é útil a propaganda. Mas isso é para tudo. Não consigo vender um manjerico, quanto mais fés

    “:O))

  9. Talvez esteja enganado, mas se a Contra-Reforma foi a resposta da Igreja ao Protestantismo, então as reformas que este papa terá de fazer para recuperar alguma noção de sagrado que se esteja eventualmente a perder são a resposta à interpretação daquilo que é a modernidade feita pelos antecessores.

    As coisas até lhe podem correr bem, a menos que de facto já não exista espaço para o tipo de fé que ele quer ver.

  10. «Eu penso que é precisamente essa a via que o Ratzinguer está a escolher.»

    Do Ratzinger e dos que o escolheram. O que é que o Ratzinger pretende é-me difícil perceber.

    Era possível que a Igreja tivesse uma leitura do laicismo que permitisse à Igreja ser laica, passo o aparente paradoxo. Isso, a meu ver, protegeria a res publica e a res sacra (independentemente do que isso seja para um crente, mas resgatá-la-ia).

    A constante crítica ao Individualismo, nos moldes actuais, só vai enfraquecer a Igreja. É óbvio que não posso dizer que isso me cause grande incómodo, ateu que sou… Mas enfim, vivemos todos juntos e se me perguntassem como arrumar a casa de modo a haver espaço para todos era isto que dizia.

    Quanto aos opositores, tenho suspeitas mas vou pensar mais nisso. Não sei se os lefebvristas ou os escrivaístas estão saciados de alguma forma, se os wojtylistas se sentem ultrajados, se os populistas temem a despromoção, se os evangélicos vão precisar de ripostar, é esperar para ver.

  11. zazie says:

    Como és inteligente, imagino que és capaz de descobrir, mesmo dentro dos católicos, quem é que se opõe mais a esta mudança.
    E os motivos estão bem na moda.

  12. zazie says:

    Mas tu és uma caixinha de surpresas, ó Sir Francis Burnay. Essa citação não é para qualquer um e muito menos para grunhos ateus.

    O que não é o teu caso. E por aí, pela cultura e gosto de saber é que os seres humanos se deviam entender

    “;O)

  13. zazie says:

    Eu penso que é precisamente essa a via que o Ratzinguer está a escolher.

    De qualquer forma há questões que já não podem recuar, precisamente por fazerem parte da sociedade: uma delas é acabar-se agora com o sermão
    Mas tudo o que leve a maior espiritualidade pelo ritual e menos folclore por palco, melhor.

    Por outro lado, uma coisa é a missa, outra a função social da Igreja. O que não me agradava, nem agrada é o folclore pela facilidade em que muitas cerimónias religiosas são transformadas. E ainda menos, ter de ouvir imbecilidades do alto do púlpito.

    Para isso, então, mais vale que seja só latim e órgão e nem se perceba o que dizem

    “:O))))

  14. «para doutrina que já não é apenas catolicismo ou cristianismo mas ingerência na vida laica»

    É precisamente por isso que disse que podia ser chato. E é essa a queixa que oiço por parte de não praticantes. Se uma religião não se consegue adaptar aos novos tempos dessa forma, fica a sugestão: pois que use o método antigo, a sedução. A música nunca foi para os santos nem para os deuses. Foi para as pessoas. E acho curiosa a forma como a fé depende da sedução pelos sentidos. Muito pagão, diga-se. Se os crentes são pagãos, as religiões também têm de ser.

    «O objectivo de cantar nos modos musicais não é o prazer vazio do ouvido, mas sim que as palavras sejam claramente compreendidas por todos, e, dessa forma os corações dos ouvintes sejam atraídos para o desejo de harmonias celestiais, na contemplação das alegrias dos abençoados»

    Isto, no Concílio de Trento.

  15. zazie says:

    Aqui há tempos acho que postei o Anton Fier, no Dreamspeed, e disse que era “salmodiado” pela Phew. Foi a pensar nessas ladainhas.

  16. zazie says:

    “Mas não costumo discutir isso com fiéis porque dizer que penso que a noção de sagrado advém de uma certa sinestesia que é igual para toda a gente, mais ou menos refinada nuns, acaba por arriscar insultar-lhe a fé. E eu só quero é que me dêem música

    Acontece-me muitas vezes o mesmo pelos mesmos motivos. E acabo a ser insultada por acharem que a minha noção de sagrado se “resume a uma corrente estética” (síc), foi isto que ainda no outro dia tive de ouvir.

    Quanto à questão do refinamento achei graça porque é uma boa verdade. Já a universalização desse gosto estético por extensão ao efeito do sagrado é outra coisa .E aí cada um sabe de si. Não se explica.

    Quando falei em evangélicos apercebi-me do erro mas já era tarde.

    Claro que nessa caricatura não entra nada do que tu referiste e muito menos os belos coros anglicanos que também gosto de ouvir e os cerimoniais a que assiso em países protestantes.

    Estava a fazer uma caricatura que também é uma questão teórica que se coloca à Igreja Católica. Qual a via: pelo rigor e conservação dos ritos do passado ou pela dissolução no mundo, à semelhança do que fez a Reforma. A resposta deste Papa é clara e eu apoiei-a. Como a apoiou o Mexia nesse belo e erudito texto que escreveu para o jornal.

    O sermão não será por ser “chato” que não me agrada. “Chata” até poderia ser a liturgia e, ainda por cima em latim. O sermão foi introduzido tarde; não existia nos tempos iniiais, nem na Idade Média.

    O que não me agrada no sermão é servir, em muitos casos, para o “corriqueiro”, para palco político; para doutrina que já não é apenas catolicismo ou cristianismo mas ingerência na vida laica e, ainda pior, pretexto, em vários casos, para manifestações de ignorância e ideologias.

    Com peça de Bach a abafar muitos deles, também eu.

    “;O)

    ……..
    Há uma coisa que acho muito bonita e não sei se já assististe: a salmodia de orações; as ladainhas das mulheres que vão para as igrejinhas da terra, preparar as novenas.

    É lindíssima e muito genuína aquela concentração.
    Mas na cidade nunca reparei que existisse. São tradições que ainda se vão mantendo no interior.

    Assim como as simulações das ordálias.

    Há esse lado erudito com bela música sacra mas também há o lado simples e popular, meio misturado com resíduos de paganismos. Gosto de todos. Se calhar, ainda me atraem mais os segundos, mas isso já se sabe o motivo…

  17. Quanto à noção do sagrado, deixo-a para os fiéis. Partilharei, quanto muito, o espanto da harmonia de algumas peças sacras. Mas não costumo discutir isso com fiéis porque dizer que penso que a noção de sagrado advém de uma certa sinestesia que é igual para toda a gente, mais ou menos refinada nuns, acaba por arriscar insultar-lhe a fé. E eu só quero é que me dêem música.

    Não posso dizer mal dos evangélicos. No apogeu da música sacra esta era evangélica e alemã.

    E mesmo a tradição evangélica norte-americana já tem as suas tradições musicais, como o gospel. Esse não vem da macumba mas quase, e foi bem conseguido e tem valor.

    Pois, o sermão é capaz de ser chato. Mas até aturava isso, por uma peça de Bach bem executada.

    É uma pena, porque todos saíam a ganhar, crentes e não crentes.

  18. zazie says:

    Tens toda a razão. Plenamente de acordo. Eu até vou mais longe: de um modo geral prefiro uma igreja quando não está lá ninguém
    ehehe
    É mesmo isso. Porque, por exemplo, custa-me a suportar o sermão.

    Agora quando há litrugia digna e se usa o que tu bem salientas, esses órgãos deixados ao abandono em vez da rockalhada pimba para “cativar o pessoal”, sim. Uma bela cerimónia religiosa e digna não tem comparação com essas palhaçadas que andavam (e andam) a imitar o folclore das macumbas e quejandos de seitas evangélicas.

    Neste caso, a decisão nem tem nada de imposição. O que acontecia é que o latim tinha sido proibido. Agora é livre e opcional, para quem o saiba. O que, na prática, por cá há-de ficar reduzido a meia-dúzia de cerimónias de elite.

    Mas vale a pena “puxar para cima”. Mais para baixo é que é difícil

  19. Pedro Escobar e Duarte Lobo, digo.

  20. Se de lá tirassem o corozinho dos escuteiros mais a viola, as ginjas, e regressassem ao Ruffo, até eu passava por lá. Ainda por cima cá, que temos os órgãos ibéricos que estão para aí a apanhar pó. Há pouco tempo ouvi Pedro Escobar Lopo de na Sé de Évora, que estava vazia, por sinal.

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