Os modernos Hunos

«(…)Porém os bispos sabiam theologia e direito canonico; os conegos e parochos, alguns sabiam latim; os frades, pelo menos os membros das antigas ordens monachaes, eram eruditos e homens de letras; mas nem os bispos, nem os conegos e curas d’almas, nem os frades entendiam de architectura. Entregaram tudo aos architectos e mestres de obras, que estragaram tudo. Quasi que escaceiava a pedra para se converter em cal. Os batefolhas não tinham mãos a medir. Columnas, capiteis, abobadas, torres, portaes, arcarias, claustros, tudo foi caiado, dourado, enfeitado, estragado. Procurae na maior parte das nossas sés, das nossas collegiadas, das nossas velhas parochias, um desses pilares polystylos, desses capiteis e cimalhas rendadas, desses bocetes e penduroes variados, dessas gargulas ás vezes insolentes, ás vezes terrificas, ás vezes finamente epigrammaticas, e nada achareis do que foi. Aquelles livros de pedra, complexos como os poemas de cavallaria, ingenuos como os poemas do Cid ou dos Nibelungen, converteram-se em palimpsestos donde se raspou a historia das crenças, dos costumes, dos trajos, das alfaias de antigas eras; onde se apagaram os vestigios de successos notaveis, de dramas populares, de lendas poeticas, e até retratos unicos de varões singulares. Nesses livros preciosos, em vez do seu primitivo conteúdo, só achareis as rasuras que mãos ineptas ahi fizeram e os caracteres que sobre essas paginas, outrora eloquentes, traçou a peior das barbarias, a barbaria pretenciosa e civilisada. Passou por lá o picão do reformador, a colher do estucador, o mordente do dourador. Paredes, pilares, capiteis, laçarias, ogivas estão rebocados, alvos, polidos, dourados. A luz do sol já não bate no pavimento do templo convertida em luz baça e saudosa pelos vidros córados das frestas esguias, dos espelhos circulares: agora alaga em torrentes essas paredes brancas e lisas, que fingem ás vezes absurdamente pedras impossiveis estendidas pela colher do alveneu sobre a face rugosa, mas secular e veneranda, da verdadeira pedra. O templo de Deus é como a sala do baile, como a sala dos legisladores, como a sala do theatro, como a praça publica, sem mysterios, sem tradições, sem saudades.

Mas se a culta barbaria dos nossos avós e de nossos paes forcejou por cobrir com remendado véu os monumentos dos primeiro seculos da monarchia, deixou em muitos delles ao menos, os seus formosos e ideaes perfis, as suas linhas architectonicas. O pensamento que inspirou essas concepções grandiosas como que se alevanta d’entre as devastações perpetradas pelo camartélo, pela picareta e pelos boiões de cal delida, e apesar de se haverem dirigido sem tino, sem gosto, sem harmonia as restaurações dos edificios que as injurias do tempo em parte haviam arruinado, resta ainda muito que estudar e admirar nesses monstros. Até, em alguns delles, é possivel supprimir, pela imaginação, o moderno e pôr em logar deste o antigo. A poesia ainda não desamparou de todo o mutilado monumento.

Mas durarão por muito tempo esses restos da mais formosa e magnifica de todas as artes? Não o esperamos; mas lavraremos aqui, ao menos, um protesto contra o vandalismo actual. Nossos paes destruiram por ignorancia e ainda mais desleixo: destruiram, digamos assim, negativamente: nós destruimos por idéas ou falsas ou exageradas; destruimos activamente; destruimos, porque a destruição é uma vertigem desta epocha. Feliz quem isto escreve, se podesse curar alguem da febre demolidora; salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos! »

Alexandre Herculano, “Monumentos Pátrios”, Opúsculos, T. II, Luisboa, 1838
imagem: Colegiada de Guiamarães (18–?),«Guimarães do passado e do presente», org. de Joaquim Fernandes Guimarães, Câmara Municipal, 1985, p. 214. Consultar Casa Sarmento

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