Porventura alguma secretaria de estado precisava de novos estofos nas suas cómodas poltronas

Ha poucos dias passou-se em Lorvão uma scena tremenda. N’um accesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las.
Tinha-se apoderado dellas uma grande ambição; aspiravam á felicidade do mendigo, que póde appellar para a compaixão humana; que póde fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos.Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por esse tumulo de vivos. Ao menos, surgiam como Lazaro da sua sepultura. Gemidos, brados, prantos, nada disso chega aos ouvidos dos homens que exercem o poder nesta terra; nada disso os incommoda.

Entretanto, se eu falasse com elles, dar-lhes-hia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a minha voz é um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de Lorvão em linha no adro da igreja e mandarem-lhes dar três descargas cerradas.

Desapparecia, a troco de poucos arrateis de polvora, um grande escandalo, e resolvia-se affirmativamente um problema a que nunca acheisenão soluções negativas, o da utilidade da força armada neste paiz.

Sim, isto era util, porque era atroz; porque era uma festa de cannibaes; porque se gravava na mente dos homens; porque ficava na historia, como um padrão maldicto, para instaurar no futuro o processo desta geração. Mas não era infame, não era covarde; não era o assassinio lento, obscuro, atraiçoado, feito com a mordaça na boca das victimas. Corria o sangue durante alguns minutos: não corria o suor da agonia durante annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas não era um capitulo inedito para ajunctar aos annaes tenebrosos do sancto officio.

A historia recente de Lorvão é simples. Os bens acumulados naquelle cenobio durante dez seculos tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua renda annual dizem que orçava por mais de oitenta mil cruzados. Como mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos monges brancos. Cem freiras de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam muito, mas não gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados n’um palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas succediam-se alli sem interrupção. Os hospedes eram continuos. O manto da religião cobria todos os excessos da opulencia. A chronica dos bernardos em Lorvão subministra mais de um capitulo curioso para a historia dos _bons tempos_ que já lá vão.

Até aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deviam comer a renda e o capital das cenobitas laurbanenses. Refere-se que certa vez, não sabendo explicar plausivelmente o dispendio de uma verba de 600$000 réis, escreveram n’umas contas irrisorias que mostravam annualmente á abbadessa: _Palitos–600$000 réis_. Pode ser fabula. O que, porém, não é fabula é que durante muitos annos o dinheiro das decimas que o mosteiro devia pagar esqueceu em Alcobaça, dando-se em conta como pago. Por outro lado as _necessidades da casa_ tinham feito com que suas reverencias empenhassem a communidade em 6:000$000 ou 8:000$000 réis. Os juros desta divida também se não pagaram. Veio o anno de 1833. Desappareceram os dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de Lorvão, sairam d’alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. Era o ultimo _vale_ que davam a suas irmãs. Ainda assim, ficava ás monjas uma honesta subsistencia. Passado, porém, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes quasi tudo pela divida de 25 contos de réis de decimas, e os credores particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas alguns pequenos foros espalhados por diversos districtos, os quaes geralmente lhes são recusados, ou cuja difficil cobrança quasi consome o producto delles.

Vacillantes entre a vida e a morte, as freiras de Lorvão prolongam uma existencia de dôr e miseria pendente das eventualidades desse tenue rendimento. Ha um ou dous annos, o governo deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porém, cessou.
Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas côres variegadas, e cumpria renová-los. São despezas inevitaveis, e é necessaria a economia. Se assim foi, respeitemos as exigencias imperiosas da dignidade governativa.

Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela inedia e pela velhice podem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalças as lageas humidas e frias destes claustros solitarios; mas as botas envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um pavimento suave, e as suas cabeças, afogueiadas pelas profundas cogitações, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a magestade das secretarias e os apices da economia não excluem a tolerancia, nem a indulgencia. Faço essa justiça ao poder. Quando a ultima freira de Lorvão expirar de miseria, ou debaixo de alguma dessas paredes interiores do mosteiro que ameaçam desabar, os ministros soffrerão com animo paternal que mãos piedosas vão lançar o cadaver da pobre monja no ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas irmãs. Depois venderão o edificio e a cerca a algum destes judeus do seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo espirito ter uma casa de campo em Lorvão.

Alexandre Herculano, “As Freiras De Lorvão (1853) A António Serpa Pimentel”, OPUSCULOS, T. I, 1873.

ficha da DGEMN Nº IPA PT020613040001
↓