República, Monarquia e Ignorância

Recomenda-se: o post de Pedro Picoito

[Excerto]

«(…)Bom, dantes a monarquia em 1908 era um regime constitucional. Tinha uma Constituição, a velhinha Carta de quase oitenta anos, um Parlamento com duas câmaras, eleições nacionais para a câmara baixa, deputados republicanos desde 1878, eleições municipais que foram ganhas pelo Partido Republicano no Porto em 1906 e em Lisboa em 1908 e, regra geral, a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias reconhecidos na maioria das monarquias constitucionais contemporâneas, como por exemplo a Inglaterra. Havia censura, que era usada sem grande êxito para impedir ataques ao regime monárquico e ao catolicismo oficial, e durante alguns meses João Franco governou sem o Parlamento, “ditadura” a que um apavorado D. Manuel II pôs termo assim que chegou ao trono. O chefe de Estado não era obviamente eleito, como não é hoje no Reino Unido, na Holanda, na Bélgica, na Dinamarca, na Noruega, na Suécia, em Espanha, no Canadá e na Austrália, essas tiranias onde os gays e o aborto são reprimidos.
Estranhamente, a I República não alterou muito isto. O chefe de Estado era agora eleito, mas pelos deputados. Nada de sufrágio directo para a Presidência. Era o que faltava, entregar à malta a eleição do mais alto magistrado da nação… O direito de voto, que na monarquia chegou a abranger um universo de 950 mil eleitores, mesmo com a restrição censitária, foi reduzido em 1911 a 400 mil eleitores, os chefes de família que fossem civis e soubessem ler e escrever. Por outras palavras, foi negado aos militares, aos analfabetos e às mulheres. Aos militares por medo da sua politização, deliciosa ironia num regime que tinha nascido de uma revolução armada, e às mulheres e aos analfabetos por medo da influência da Igreja sobre os espíritos simples. Na prática, o eleitorado da I República estava concentrado nas grandes cidades, onde, como vimos, o Partido Republicano já ganhava eleições durante a monarquia.
De resto, o amor dos republicanos pela liberdade de opinião é bem conhecido. À falta de monárquicos convictos, que rapidamente se volatilizaram, a I República elegeu como inimigo programático os católicos e, muito em particular, o clero. Logo no próprio 5 de Outubro, elementos da Carbonária tomaram de assalto as casas dos jesuítas em Arroios e Campolide e mataram a tiro meia dúzia de padres, um deles o confessor da Rainha. Outros conventos de freiras e frades foram invadidos, sem estragos de maior a não ser a famosa medição de cabeças clericais para provar as semelhanças fisionómicas entre a padralhada e os criminosos de delito comum. Poucos meses depois, as ordens religiosas eram extintas, com as consequências que se adivinham na asssistência e no ensino, e todos os bens da Igreja nacionalizados, façanha a que Chávez ainda não se atreveu na Venezuela. Para gerir missas, funerais, procissões, etc., os republicanos puseram à frente de cada paróquia uma “comissão de culto” com gente sua, que mandava no pároco. A isto chamaram “lei da separação entre a Igreja e o Estado”, o que soa contraditório e é, mas lhes dava também a possibilidade legal de tratar os padres e os bispos como funcionários públicos. Não contentes, restauraram o beneplácito régio medieval, impondo o exame prévio a todos os documentos públicos dos bispos ou da Santa Sé. Como se recusassem a acatar esta e outras ingerências, em meados de 1912 todos os bispos de Portugal continental (Braga, Porto, Bragança, Lamego, Viseu, Coimbra, Guarda, Portalegre, Lisboa, Évora, Beja e Faro) tinham sido depostos ou expulsos das suas dioceses, em certos casos pela violência. A mesma violência com que a Carbonária de Santarém destruiu, à bomba, a primeira Capelinha das Aparições na Cova da Iria, assim que o obscurantista fenómeno teve o sucesso popular que se sabe.
Nada que se compare, porém, à selvajaria que os próprios republicanos empregavam fervorosamente uns contra os outros. Ao melhor estilo revolucionário, a I República viveu mergulhada em dissidências, lutas entre facções e crises políticas que se resolviam à pistola e à bengalada. Numa das purgas, a célebre “noite sangrenta” de 19 de Outubro de 1921, foi assasinado Machado dos Santos, o líder dos revoltosos do 5 de Outubro na Rotunda, por um grupo de magalas e carbonários que percorriam Lisboa liquidando os seus adversários, acção higiénica a que não escapou o próprio chefe do Governo em exercício, António Granjo.
(…)


A ler, na íntegra, no Cachimbo de Magritte

18 comments on “República, Monarquia e Ignorância”

  1. zazie says:

    A tradição dos mata-frades é mesmo muito moderna. E é principalmente essa questão que me importa.

    Porque a ideia que se vende é que a longa tradição é a da tirania religiosa.

    E também pelo facto do jacobinismo está a ter um novo fôlego ao associar-se a novos mitos de uniformização politicamente correcta. Paradoxalmente, esta intoxicação ideológica contamina os próprios defensores da Igreja.
    Alguns deles até trabalham activamente para o jacobinismo sem se darem conta.

    ………

    A minha motivação é política e de liberdade; para que se note de onde vem agora a doutrinação, fora isso não há muito mais. Há o património, claro, que também costuma apanhar à tabela.

  2. zazie says:

    Pois foram frioleiras. Se reparares eu tenho essa informação no post anterior. Só que depois retomaram-se e com a república houve novos encerramentos.

    Mas os primeiros foram os jacobinos liberais. Motivo pelo qual também arrumei estes postais na tema do jacobinismo e não no da monarquia ou república.

  3. Frioleiras says:

    Ah !
    Esqueci-me d dizer:as ordens religiosas foram extintas em 1834.

  4. zazie says:

    O Hogarth é um personagem com muito interesse. Não só por ele, como pelo sentido mediático que parece antecer o dos nossos dias.

  5. Antónimo says:

    Bonito, bonito é… olha, é o teu (os teus) post sobre o Hogarth!

  6. zazie says:

    Estou a leste do que quer que seja…

    Mas lá que tens uma maravilha de um post novo no teu estaminé, tens.

    E também está um bonito dia de sol.

  7. Antónimo says:

    Ó madrinha, não me obrigues a explicar a pipa do Mandingo… Digamos que a minha preocupação era o Picoito fumar Mandingo por Magritte, gordito por magrito, digamos… Enfim, que tivesse cuidado com o que mete na boca. Sendo teu amigo e tudo…

  8. zazie says:

    O que me deixou intrigada foi esse:

    e católica,

    tb…

    … mas adoro ler(vos)

    ? será que isto cheira assim tanto a enxofre? olhe que se cheirar o musaranho não tem culpa, há-de ser rasto do Sir Francis Burnay.

    ehehe

  9. zazie says:

    Olá Antónimo,

    Conta lá a história que eu sou mais pré-moderna
    “;O)

    …………..

    Viva Frioleiras,

    É muita simpatia sua.
    Quanto a “monarquismos” é um tanto difícil explicar e o Antónimo sabe.
    Será mais simples dizer que não sou assim de grandes convições e também não vejo o que adiantava, uma vez que, por cá, até é proibido escolher-se rei; mesmo que não fosse, algo me diz que ainda faltaria qualquer coisa.

    Ainda assim, considero um abuso não se poder escolher monarquia.
    ehehe

    Simplificando, vou repetir o Pedro, sem lhe ter perguntado o sentido da afirmação: “não sou republicana mas também não sou monárquica”.
    Fica à v. interpretação.

    Mas sou mesmo muito anti-jacobina
    “;O))

  10. Frioleiras says:

    e católica,

    tb…

    … mas adoro ler(vos)

    concorde
    ou
    não

    mts xs

  11. Frioleiras says:

    gosto de ler estes textos
    … quand même …

    (confesso, para além de tudo que adoro história … bem “contada”

    e

    sou monárquica convicta…)

  12. Antónimo says:

    (Pssst, pssst… Alguém tem de dizer ao Picoito que o cachimbo não é do Magritte: é do Mandingo… Por acaso até vim ler porque passo por cá com alguma frequência. A frequência faz o acaso, confesso.)

  13. zazie says:

    Pois, o argumentário do meu amigo Tim é um argumentário um tanto difícil de se entender, mas acredito que o Magritte era capaz de se inspirar nele.

    ehehe

  14. Cara Zazie
    Por acaso até vim ler porque passo por cá com alguma frequência. Mas confesso que tenho alguma dificuldade em alcançar o argumentário exposto.

  15. Pedro picoito apenas se esqueceu de dois promenores:

    Os 950 000 eleitores representavam 90% da população masculina portuguesa maior de 21 anos (Nessa altura em toda a europa apenas votavam homens maiores de 21 anos), até ao final da monarquia foram impostas algumas restrições mas o número de eleitores nunca baixou dos 600 000. Na 1ª República o número de eleitores chegou a diminuir até 250 000, havendo apenas uma única eleição na qual foram recenseados 750 000 eleitores – A eleição plebiscitária de Sidónio Pais (Um terrível ditador segundo reza a história oficial aprovada pelo Grande Oriente).

    O outro ponto é o simples facto (ausente dos livros de História oficial aprovada pelo grande oriente) que entre 1910 e 1976 não se realizaram eleições locais. Nesse periodo os presidentes de Câmara eram nomeados pelo poder central.

  16. zazie says:

    A verdade é que nestas coisas também há fé para tudo, sendo que a ignorância ainda pode ser curada, enquanto que das fezadas ninguém se livra.

  17. zazie says:

    O Chávez é mesmo o absolutamente acessório em toda esta lição de História.

    De qualquer forma o post está linkado e podes deixar lá a recomendação. É mais provável lê-la lá do que aqui.

    Só uma nota: o Pedro Picoito é um bom historiador e, por acaso, também é meu amigo.

    Quanto a medição de graus de pureza de fé, desconheço. Esse não é o meu departamento, ainda que já tenha ouvido dizer que existe maquineta e que é idêntica ao balão de alcolémia

  18. timshel says:

    “Poucos meses depois, as ordens religiosas eram extintas, com as consequências que se adivinham na asssistência e no ensino, e todos os bens da Igreja nacionalizados, façanha a que Chávez ainda não se atreveu na Venezuela”

    esse gajo percebe tanto de Chavez como eu percebo de plantação de cebolas

    a justificação do regime de Chavez, feita pelo próprio, é mais religiosa do que todas as pseudo-intelectualices pseudo-católicas feitas por esse picolho

    ele que leia as leis da Venezuela sobre o aborto e vai logo dizer que o Chavez é um fundamentalista católico
    (como bom pseudo-intelectualóide pseudo-católico)

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